É difícil ler ou ouvir qualquer coisa sobre a economia do Brasil sem tropeçar no termo “reformas”. Todos usam a mesma palavra vagamente e cada um se refere a uma coisa diferente. Sem desfazer esta confusão, não é possível compreender o debate econômico brasileiro.
A grande linha central que une a política econômica pós-impeachment está nestas mesmas palavras usadas para nomear coisas diferentes. Não existe uma “agenda de reformas liberais” continuamente aplicada durante os últimos cinco anos. Há, pelo menos, duas rupturas na política econômica durante o período: uma após o fim do governo Temer e outra após o fim da presidência de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados.
A primeira ruptura: das reformas de longo prazo às promessas de choques milagrosos
Por bons motivos, poucos perceberam a primeira ruptura enquanto ela acontecia. Em 2018, Paulo Guedes era visto como defensor da responsabilidade fiscal para reduzir a taxa de juros e de reformas para estimular a produtividade da economia. Foi suficiente para que muitos o tratassem como similar ao governo anterior. O futuro ministro elogiava a agenda do governo Temer e o próprio ex-presidente da República reconhecia Guedes como sinal de continuidade na área econômica.
Num olhar retrospectivo, é fácil notar diferenças importantes que passavam batidas. A responsabilidade fiscal de Temer focava na trajetória dos gastos públicos a médio prazo, ao invés de cortes desde o presente. O governo anterior acreditava que essa estratégia seria politicamente mais fácil, não desaqueceria a economia em crise e serviria como ferramenta para reduzir a taxa de juros.
Paulo Guedes, por sua vez, acreditava na sua capacidade de cortar gastos desde o presente e em velocidade superior ao governo anterior, além de aprovar mudanças drásticas nas regras orçamentárias. O ministro também prometia acelerar privatizações e vendas de outros ativos, gerando arrecadação. O resultado seria uma redução drástica do déficit público a curto prazo, o que o governo Temer via como desperdício de capital político.
Outro ponto de diferença é nas reformas voltadas a ganhos de produtividade. Durante o governo Temer, propostas como as mudanças do saneamento básico e da TLP incluíam transições buscavam o impacto no longo prazo, priorizando a efetiva aprovação dos projetos e a manutenção de regras do jogo previsíveis.
Guedes preferia reformas setoriais que gerassem choques de curto prazo, como o “choque da energia” que diminuiria o preço do gás pela metade após dois anos de governo. É importante notar que essa preferência por choques se manifesta também na visão do atual ministro para as contas públicas. Em ambos os casos, especialistas apontaram o otimismo excessivo de Guedes desde o primeiro momento e as promessas fracassaram.
Essa ruptura entre as duas visões para a economia começa a ficar mais nítida após os conflitos entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia em torno da reforma tributária. O ex-presidente da Câmara era um defensor da agenda de Michel Temer, sendo próximo dos mesmos economistas que fizeram a cabeça do governo anterior. Por isso, parte da agenda bolsonarista em 2019 e 2020 defendia propostas desenhadas pela equipe econômica anterior. Esta convivência entre as agendas de Maia e Guedes prolongou a confusão junto ao público, incentivando o uso das mesmas palavras para se referir a coisas que já eram diferentes desde aquele momento.
A segunda ruptura: a agenda de reformas eleitoreiras
Há uma outra ruptura, mais recente e brusca, que começa com o enfraquecimento de Paulo Guedes em 2020 e se consolida quando Arthur Lira derrota Rodrigo Maia na eleição da Câmara. Neste momento, a responsabilidade fiscal e as reformas visando ganhos de produtividade passam a existir somente nas aparências.
No lugar das promessas de redução do déficit a todo custo desde o curto prazo, o Orçamento de 2021 e a PEC dos Precatórios demonstram uma guinada na direção da irresponsabilidade. Episódios como o recorde de emendas parlamentares demonstram que o processo foi além da pandemia.
As reformas visando ganhos de produtividade também perderam força. Até assistimos a algumas medidas positivas neste campo, que são cada vez mais raras, mas a regra tem sido a mesma que se viu na MP da Eletrobras: não faltam jabutis para agradar a base aliada.
É até injusto associar Paulo Guedes à política econômica pós-2021. A grande culpa do ministro é apegar-se, acima de tudo, ao cargo. Não há visões sobre a economia guiando a economia. As reformas estruturais deram lugar às reformas eleitoreiras. Se Guedes queria controlar gastos para reduzir os juros de longo prazo, hoje ele entrega um aumento dos juros de curto e longo prazo, evidenciando que, além de a inflação preocupar, a credibilidade das contas públicas também preocupa.
Os mercadores da confusão
Por que, então, usamos as mesmas palavras para se referir ao que são pelo menos três agendas diferentes? Porque é conveniente a muitos usuários dessas palavras.
O bolsonarismo se vende como responsável por continuar e até aprofundar as supostas “reformas liberais”. Segundo a narrativa, Guedes reforma por convicção, pois é um liberal legítimo, diferente dos social-democratas que reformavam por conveniência ou necessidade.
O petismo, por sua vez, quer associar a terceira via ao governo. Um clichê da tribo diz que tucanos são bolsonaristas que comem de garfo e faca. Outros dizem que centro e direita não-bolsonarista são iguais a Paulo Guedes.
Por fim, a terceira via precisa justificar por que tantos deputados tucanos e emedebistas aderiram ao bloco liderado por Arthur Lira na Câmara. As lideranças partidárias não podem reconhecer que colegas trocaram votos importantes por cargos e emendas – ainda mais porque a venda foi no varejo, sem a benção dos caciques. Fica mais fácil alegar uma abstrata defesa das reformas, perdendo a oportunidade de se desvincular do impopular residente do Palácio da Alvorada.
Como bem lembrava Orwell, o mau uso do idioma é causa e consequência da má política. As diferenças entre as agendas econômicas de Temer e Bolsonaro precisam ser ressaltadas – primeiro porque elas existem, mas também porque o reconhecimento delas tem impacto nas nossas análises sobre a política brasileira. A confusão serve à propaganda partidária, mas atrapalha a reconstrução do Brasil.
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