Sem critério e aprovado no fim de março do ano de exercício, o suposto Orçamento federal de 2021 subestimou despesas obrigatórias para expandir irresponsavelmente as emendas parlamentares. Paulo Guedes imediatamente replicou: o projeto é “inexequível”.
Se o leitor quiser entender o argumento econômico por trás das críticas ao Orçamento, sugiro que leia primeiro a minha última coluna. Mas retomo a pauta, caro leitor, porque não podemos subestimar a importância do que está acontecendo. É crucial ir além dos números e entender a economia política por trás deste escândalo que escandalizou menos gente do que deveria.
Quando defendi o impeachment da presidente Dilma, escrevi por diversas vezes que o orçamento é peça fundamental de qualquer democracia. E não era mero casuísmo para demitir uma presidente que me desagradava. A função primordial do orçamento federal é planejar e prever o que o governo fará num dado ano. Inúmeras conclusões corretas sobre a democracia, a economia e a cultura de um país podem vir da mera observação sobre como esse país lida com o orçamento público. No Brasil de 2021, os sinais são péssimos.
Se um instrumento de planejamento para 2021 é aprovado em março, temos aí uma forte evidência de que algo vai mal. A evidência fica ainda mais forte após as declarações de Guedes. Se o orçamento é inexequível, ou impossível de ser executado, para que ele serve?
Não serve para planejar o ano que já começou, nem para incluir o Legislativo republicanamente nos debates sobre o uso do dinheiro público. Nem serve para prever o comportamento das despesas federais em 2021, pois o ministro que comanda o Tesouro Nacional está dizendo que não para cumprir o combinado mal feito.
O grande jornalista Ribamar Oliveira, referência maior na cobertura das contas públicas, tem escrito que o orçamento de 2021 é uma peça de ficção. Os números aprovados pouco importam. Todos sabemos que não serão cumpridos. O projeto prevê e planeja apenas uma coisa: crimes orçamentários e gambiarras jurídicas para salvar a pele dos responsáveis.
Repare, caro leitor: trato apenas de implicações políticas gerais, sem comentar casos como o Censo, que deveria ter sido realizado em 2020 e perdeu 96,5% das verbas previstas; a presidente do IBGE, com razão, pediu demissão.
Como a política precisa sempre de polos, conflitos e narrativas, muitos abordam a disputa em curso como entre Executivo e Legislativo. Este foi um ponto subestimado na coluna anterior: é crucial lembrar que o governo está em ambos os lados do debate. Nem Paulo Guedes nega este fato – basta assistir à sua primeira resposta em entrevista recente ao portal InfoMoney.
O próprio ministro da economia ressalta que outros ministérios agem em parceria com parlamentares na expansão das emendas. Quem acompanha o processo de perto sabe de quem se trata: Tarcísio Freitas (Min. da Infraestrutura) e Rogério Marinho (Min. do Desenvolvimento Regional).
O conflito que opõe Guedes a Tarcísio e Marinho é antigo. Quem tiver boa memória deve lembrar do plano Pró-Brasil. Patrocinado por Tarcísio e Marinho, com apoio de Walter Braga Netto (então chefe da Casa Civil), o plano buscava uma expansão dos investimentos em infraestrutura para retomar o crescimento econômico e foi lançado sem a presença do Ministério da Economia.
O conflito se manteve nos meses seguintes e chegou ao Orçamento. Servidor federal, Tarcísio tem anos de Brasília, enquanto Rogério Marinho é famoso como um dos melhores articuladores da política nacional. Com mais habilidade e experiência, deram um chapéu em Guedes.
Apesar de nascerem em iniciativas do parlamento, as emendas parlamentares são operadas pelo Poder Executivo. O acordo feito envolvia não só a expansão de emendas, mas a destinação delas aos ministérios da Infraestrutura e Desenvolvimento Regional, comandados respectivamente por Tarcísio Freitas e Rogério Marinho.
Não se trata de segredo ou especulação. Ainda em setembro de 2020, o Ministério da Infraestrutura já lançava notas públicas prevendo o uso de emendas parlamentares em suas obras. O assunto foi retomado por diversas vezes. Os últimos meses acumulam inúmeras declarações sobre emendas parlamentares como instrumento de retomada do investimento.
A coluna de Rosana Hessel, no Correio Braziliense, destaca alguns números que merecem atenção. Os investimentos previstos pelo governo federal mais do que dobraram na versão final do orçamento fictício. O valor saiu de R$ 25,9 bilhões para R$ 52,5 bilhões.
O Ministério do Desenvolvimento Regional, de Rogério Marinho, previa investir R$ 2,3 bilhões e agora prevê R$ 16,1 bilhões – a previsão de investimento cresceu 600%, multiplicando-se por 7. Em seguida na lista de ministérios com maior previsão de investimento, estão a Defesa (R$ 8,9 bilhões em investimentos) e Infraestrutura (R$ 8,1 bilhões em investimentos). Curiosamente, os ministros que lideram essas pastas são os mesmos três que anunciaram o pró-Brasil à revelia de Guedes: Rogério Marinho, Walter Braga Netto (hoje ministro da Defesa) e Tarcísio Freitas.
Para se ter ideia do privilégio a esses três ministérios, os ministérios seguintes na lista são os da Educação e Saúde. A soma dos investimentos previstos nas duas pastas é igual à previsão de investimento do Ministério da Infraestrutura.
Após o anúncio do Pró-Brasil, Bolsonaro rapidamente correu para socorrer Paulo Guedes. Reafirmou a confiança no “Posto Ipiranga” e subordinou o Pró-Brasil ao Ministério da Economia. O caso do Orçamento de 2021 mostra que aquele conflito segue vivo e quente. Marinho, Braga Netto e Tarcísio não desistiram, apenas recuaram para tomar impulso.
A expressão “desgoverno” é excessivamente utilizada na política, mas serve perfeitamente. Ao definir “governo”, o dicionário Michaelis usa duas expressões interessantes: “direção” e “regência”. Governar é apontar um caminho a ser seguido ou comandar as diferentes partes de uma orquestra para garantia a harmonia da música.
O que vemos, atualmente, é o exato oposto de direção e regência. Um superministro trabalha para proteger o teto de gastos, outros três trabalham para sabotar o teto. Cada músico toca o que quer, como se a orquestra não tivesse maestro. Desgoverno, puro e simples.
A desafinação tem impacto econômico real. É normal que o Real se desvalorize e fique mais volátil nos tempos atuais, mas o Brasil tem se destacado pelo grau adicional de incerteza. Desde o início da pandemia, o Real passou a maior parte do tempo como a moeda mais volátil entre economias emergentes. A incerteza é a marca do momento atual.
Infelizmente, a característica não se aplica apenas à pauta econômica. No próprio combate à pandemia, é sintomático que os dois médicos que lideraram o Ministério da Saúde tenham sido demitidos do jeito que foram. Em ambos os casos, a dissonância entre membros do próprio governo ficou evidente. A história guardará a expressão abobalhada de Nelson Teich ao ser informado sobre decretos presidenciais publicados durante entrevistas coletivas, sem diálogo com o Ministério da Saúde.
Vale a pena observar as falas de Guedes sobre o tema, indo além da dificuldade de execução do orçamento. Além de ressaltar o papel dos colegas, Guedes ressalta que os dois lados da discussão são aliados. Para o ministro da Economia, o Orçamento de 2021 sequer deveria ser alvo de polêmica, pois é só mais uma turbulência na nossa democracia vibrante. Apertem os cintos, o piloto sumiu.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS