Sempre que uma política social busca atingir a camada mais pobre da população, surge a mesma crítica: trata-se de assistencialismo. Segundo o dicionário Michaelis, a palavra tem dois significados. O primeiro, descritivo e pouco utilizado, refere-se a qualquer “trabalho estruturado de assistência social”. Já o segundo, pejorativo e muito mais comum, abarca a “pretensa assistência social às pessoas carentes da sociedade, exercida por políticos, com o intuito de conseguir apoio eleitoral”.
Considero injustas as críticas ao Renda Brasil que classificam o programa como assistencialista, no sentido pejorativo da palavra. Digo o mesmo sobre as críticas similares que existem contra o Bolsa Família.
O bolsonarismo copiou alguns dos piores defeitos do petismo, como muitos lembram corretamente. Mas o Bolsa Família, programa de transferência de renda focalizado em famílias pobres, não está entre esses defeitos. Pelo contrário, foi um dos acertos do governo Lula e só prosperou porque o ex-presidente ignorou críticas da intelectualidade e da militância petista, que historicamente rotulavam programas focalizados como mera esmola capitalista. Parcelas mais radicais da esquerda ainda torcem o nariz em relação à renda básica. Apesar do discurso mudar conforme a posição política de quem o expressa, as críticas ao “assistencialismo” desse tipo de programa aparecem tanto na esquerda quanto na direita.
As críticas vindas da esquerda, em geral, se originam em algo próximo ao que Raymond Aron chamava de religião secular. Ao contrário do sociólogo francês, não me refiro a um comunismo estrito. Trata-se de uma vaga teologia da revolução que permanece viva na mentalidade da esquerda brasileira. Políticas de transferência de renda focalizada reforçam o capitalismo. Ao invés de questionar os atuais modos de produção, este tipo de programa permite que indivíduos pobres participem de modo mais saudável da economia de mercado – por exemplo, aumentam o poder de barganha dos beneficiários frente aos seus empregadores.
A direita, por sua vez, tem maior foco na ideia do assistencialismo. Segundo dizem muitos críticos, não se trata de ajuda a quem precisa, mas da formação de currais eleitorais. Uma das versões mais comuns deste discurso considera que as transferências de renda não oferecem uma saída da pobreza, apenas aliviam uma situação atual. Este discurso é repleto de equívocos e preconceitos.
Primeiramente, vale a pena fazer referência à armadilha da pobreza, ideia cada vez mais discutida por especialistas em desenvolvimento econômico. Uma das grandes dificuldades do combate à pobreza é que a própria condição de pobreza incentiva a tomada de más decisões. Um exemplo comum é o da família que coloca o filho para trabalhar durante o horário de aula. O desespero leva a escolhas ruins que prejudicam o bem-estar dos mais pobres. Dar dinheiro é, também, uma forma de aliviar esta armadilha.
Com R$ 200 a mais na renda familiar, mais crianças podem estudar. O Bolsa Família foi particularmente efetivo ao combater este problema, pois a frequência escolar está incluída no desenho do programa. Por outro lado, estudos de economistas ligados ao Ipea negam a tese de que o Bolsa Família incentiva os beneficiários a terem mais filhos.
Já o preconceito está na ideia de que, se um grupo de pessoas apoia o governante que promove transferências de renda, este grupo forma um “curral eleitoral”. É normal que um estrato da sociedade simpatize com um político que o beneficiou. Se os pobres aderiram a Lula por causa do Bolsa Família, os sucessores de Lula precisam trabalhar para mostrar que também se preocupam com eles. Assim funciona a política – em todos os estratos sociais, de baixa ou alta renda.
A história do Brasil também importa. A atual distribuição de renda do país, com grandes grupos na pobreza e poucos privilegiados, tem claras origens históricas. Até meados do século 20, nem sequer era possível afirmar que o Brasil teve uma democracia. O que havia, de fato, era uma oligarquia, forma de governo na qual todo o poder político está concentrado num pequeno grupo de pessoas. Não fosse por isto, a universalização da educação básica teria ocorrido mais cedo e a escravidão teria acabado muito antes.
Dada a história do Brasil, políticas de redistribuição de renda não são uma esmola assistencialista. Pelo contrário: tratam-se de políticas de reparação, cujos beneficiários são os grupos que sempre foram prejudicados pelas decisões da nossa antiga oligarquia. Em seu momento inicial, este país foi projetado por uma elite que precisava que os pobres fossem pobres. Não há socialismo no argumento, apenas uma constatação histórica trivial – o grande liberal José Guilherme Merquior concordaria com o que escrevo.
Ninguém está dando uma esmola a preguiçosos. Ao contrário, o objetivo é consertar uma das mazelas originais do Brasil, de modo que o futuro do país não repita problemas do passado. As transferências de renda focalizadas, política social historicamente associada aos liberais, não merece a crítica do “assistencialismo”. Trata-se de uma pequena reparação que ajuda a economia de mercado brasileira a funcionar melhor.
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