| Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Um sistema tributário neutro é aquele que não distorce as decisões de agentes privados. O Brasil é campeão no campo das distorções tributárias. Sendo a neutralidade uma causa tipicamente liberal e crucial para o futuro do Brasil, por que ela é ignorada pelos liberais brasileiros?

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Ou pior: a neutralidade chega a ser criticada por alguns liberais! Num dos seus muitos equívocos no debate sobre reforma tributária, Paulo Guedes conseguiu ver liberalismo na guerra fiscal do ICMS. O MBL felizmente mudou de posição – por sinal, a capacidade de admitir erros e corrigir rotas tem sido uma virtude do movimento –, mas chegou a fazer campanha contra a PEC 45 com a explícita intenção de garantir tratamento diferenciado para o setor de serviços.

A quem se interessar pelo assunto, escrevi uma coluna sobre isso em novembro de 2019: “O princípio hayekiano que Paulo Guedes e Arthur do Val ignoram”. Hoje, relembro o caso porque ele exemplifica bem um fenômeno que me intriga: o apego de indivíduos militantes a causas irrelevantes.

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Enquanto os liberais brasileiros ignoram ou sabotam uma das pautas liberais mais importantes para o Brasil, a privatização dos Correios recebe destaque e unanimidade.

Veja bem, caro leitor: geralmente sou a favor da privatização de estatais, principalmente da Petrobras. Mas é importante guardar algum senso de proporções sobre o que é mais relevante para o desenvolvimento de longo prazo do Brasil. Além do mais, cada privatização – e especialmente a dos Correios – envolve uma complexa discussão regulatória, quase sempre escanteada pelo debate ideológico e binário.

Cito os liberais porque conheço melhor os debates internos deste campo político, e sei que muitos dos meus leitores se consideram liberais, tal como eu. Mas uma crítica similar poderia ser dirigida à esquerda. Vimos um bom exemplo no debate sobre o marco regulatório do saneamento básico.

Concretamente, o PL aprovado extinguia os contratos de programa, conhecidos pela falta de transparência ou critério. As prefeituras serão obrigadas a abrir concorrências públicas antes de fechar contratos de água e esgoto. A esquerda brasileira defendeu a manutenção dos contratos de programa, tratando a concorrência como pauta de liberais malvados e privatizadores. A prioridade era evitar privatizações a todo custo. Com esse objetivo, a esquerda brasileira se aliou a sindicatos e servidores do saneamento.

Quando observamos as prioridades da esquerda brasileira, o que vemos é uma agenda completamente capturada pelos interesses de altos servidores públicos. A redução das desigualdades é apenas um pretexto ideológico para a defesa de interesses materiais concretos. Os partidos de esquerda defendem o interesse de seus integrantes. E, afinal, sindicatos da elite servidora têm muito poder dentro desses partidos, bem as pesquisas mostram como Guilherme Boulos era o candidato predileto da esmagadora maioria dos servidores paulistanos nas eleições de 2020.

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O mesmo vale para os liberais. Empresários do setor de serviços, que temem a neutralidade tributária por ignorância, são cruciais para explicar os posicionamentos de Guedes e do MBL sobre o tema. A base dos liberais é fortemente calcada nas classes médias urbanas, ligadas ao setor de serviços.

O apreço de certos militantes pela irrelevância não se dá por acaso. É, também, fruto de um acobertamento dos seus verdadeiros interesses. Não é preciso má intenção. Pelo contrário: o ser humano é excepcional em convencer a si mesmo sobre o alinhamento entre seus interesses materiais e ideológicos.

Os defensores dos contratos sem transparência acreditavam, firmemente, defender os interesses dos brasileiros sem acesso a esgoto. O mesmo vale para os liberais sabotadores da neutralidade.

Mas há outro fator que merece atenção: a história. O debate sobre privatizações foi central na Guerra Fria. Após a queda do muro, nos anos 1980 e 1990, o tema continuou em voga. Há uma dificuldade em reconhecer que, em pleno 2021, o tema não tem a importância de outrora.

As próprias identidades políticas de liberais e socialistas são baseadas em posições firmes nesse tipo de debate. A privatização de uma estatal deixa de ter como objetivo o desenvolvimento nacional. O objetivo é sinalizar pertencimento a uma tribo e fortalecer seus interesses.

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Com assustadora frequência, esses interesses materiais e identitários impedem a reflexão racional sobre o que importa. O resultado é uma dissociação entre o discurso ideológico e as posições concretamente adotadas por cada grupo. A esquerda favorece a desigualdade ao defender a elite servidora. Os liberais favorecem o intervencionismo quando combatem a neutralidade.

Ideologia não deveria ser um assunto tabu. Pelo contrário: todos temos ideologia e elas são importantes na formação das nossas opiniões. O problema é que as ideologias estão no campo das ideias. A política se baseia em tribos – com alianças, rivalidades e dinâmicas específicas de cada grupo. A diferença entre o que importa no campo das ideias e o que importa para a concentração de poder numa tribo explica, em grande parte, as contradições e falta de senso de relevância da maioria dos militantes.

Portanto, acredito que a solução não passar por ignorar o debate ideológico. O mais importante é sempre lembrar que as tribos nem sempre defendem as ideias que dizem defender. Liberais não devem ser automaticamente associados à defesa da democracia e mercados, bem como socialistas não se norteiam necessariamente pela redução das desigualdades entre classes.

Liberais, conservadores e socialistas, de modo genérico, defendem as próprias tribos, seus interesses materiais e birras históricas. Desconfio que o verdadeiro desafio do militante não é escolher suas prioridades. Difícil mesmo é confessar que, debaixo da fantasia de muitos ideólogos, predominam interesses que nada tem a ver com suas belas ideias.