| Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP

“Portugal está superando crise econômica sem recorrer a fórmulas de austeridade, diz Economist”, publicou a BBC Brasil no dia 5 de abril de 2017. Viralizou. No dia 7, a Folha de São Paulo republicou o texto, como se fosse parceria com uma das equipes de jornalismo mais respeitadas do mundo. No dia 8, foi a vez do G1. No topo de ambas as páginas, aparecia em destaque o logo da “BBC News”, sem menção à filial nacional.

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Mal sabia o leitor: naquele texto, tinha mais Brasil do que BBC. A Economist jamais publicou isso. A BBC Brasil publicou uma mentira pura e simples em sua manchete – não importam as marcas, fatos são fatos. (Repare, leitor: estou publicando os links entre o texto. Caso duvide das minhas descrições, pode checar o original.)

Traduzido, o título da matéria da Economist seria algo como “Portugal corta déficit fiscal enquanto aumenta aposentadorias e salários”. Factual, sem termos fortes e politizados. Ao longo do texto, a palavra “austeridade” aparece duas vezes, ambas na boca do presidente português.

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A Economist nunca publicou isso. Seria um completo absurdo para quem conhece os dados. Portugal está passando, nos dois últimos mandatos, por um ajuste fiscal que, sob qualquer medida razoável, é muito mais radical que o brasileiro.

Desconfiando do jornalismo militante, busquei no Google todas as referências a “Portugal” e “Economist” no site BBC.com, que hospeda a maioria das notícias produzidas nas filiais da BBC pelo mundo. Encontrei duas referências – uma em português, outra em espanhol.

Para minha surpresa, a versão hispânica era factual como a Economist. A manchete se referia a um país que reduziu déficit e aumentou salários. Os textos em português e espanhol são similares, mas no primeiro é repleto de baixarias ideológicas.

Eis o subtítulo em espanhol: “Em meio às más notícias econômicas que chegam da Europa desde a crise de 2008, os resultados de Portugal se sobressaem positivamente”.

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Em Português, dizia: “Enquanto a Grécia recorria a um pacote de socorro oferecido pela União Europeia e pelo FMI para escapar de um colapso financeiro absoluto, Portugal, que também vivia uma situação bem difícil, decidiu ir por um caminho bastante diferente”. O “caminho muito diferente” de Portugal foi justamente um acordo com FMI e União Europeia para escapar de um colapso financeiro absoluto.

O ajuste fiscal realizado a partir de 2010 passou tanto pelo Congresso quanto pelos tribunais lusos, que discutiram a chamada “jurisprudência de crise” para salvar o país. O Estado português cortou 13º e 14º salários dos aposentados, congelou o valor das aposentadorias e impediu aposentadorias precoces que estavam previstas na lei. Tudo do dia pra noite, sem regra de transição. Passaram a cobrar uma contribuição adicional à Previdência que podia chegar a 40% do salário.

Praticaram austeridade pesada, muito mais pesada que a brasileira. Retiraram direitos sem dó nem piedade, porque não dá para brincar com a insolvência do Estado. E ainda fizeram reformas pró-mercado. No relatório do Banco Mundial sobre facilidade para fazer negócios, os lusos saíram da 48ª posição em 2009 para a 23ª em 2014.

Todas essas medidas têm impacto negativo no PIB, contribuindo para uma crise de grandes proporções no curto prazo. Se os heterodoxos dizem que o Brasil cometeu "austericídio" a partir de 2015, Portugal foi responsável por um genocídio fiscal.

Hoje, os portugueses vivem seu melhor momento do século 21 em termos de crescimento do PIB per capita. A taxa de desemprego em 2018 foi a menor em 14 anos.

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Quando a Economist publica que o governo socialista de Portugal está cumprindo suas metas fiscais, ela se refere justamente ao cumprimento dos acordos fechados pelo governo anterior.

É verdade que parte da jurisprudência de crise referente a aposentadorias e salários do setor público está sendo revertida – parte da reversão já era prevista. Mas isso acontece através de um corte radical dos investimentos, que, no atual governo, chegaram a níveis menores do que no auge do acordo com o FMI. Quem puxa o crescimento dos investimentos portugueses é o setor privado.

O artigo da BBC em sua versão Brasil, republicado por toda a imprensa nacional, tinha uma intenção clara: associar o sucesso de Portugal às políticas defendidas pela esquerda brasileira. A realidade é exatamente oposta.

Nossa esquerda defende um ajuste fiscal gradual para evitar a revisão de direitos e impactos negativos no PIB. Portugal foi radical. Nos primeiros 2 anos de ajuste fiscal, elevou o resultado das contas públicas em 7,1 pontos percentuais do PIB. No Brasil, o ajuste foi de 0,7 pontos percentuais do PIB nos primeiros dois anos. Dizem que é o apocalipse neoliberal, mas, num primeiro momento, nossa austeridade teve 10% da intensidade portuguesa.

Ao invés de elevar os investimentos públicos como porcentagem, o ajuste fiscal português foi duríssimo. As principais concessões do governo liderado pelos socialistas foram para outras linhas do orçamento. A esquerda brasileira diz que o Brasil nunca vai se recuperar da crise se depender apenas do investimento privado. Os portugueses, que viram sua taxa de desemprego cair quase 10 pontos percentuais em poucos anos,  discordam.

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A única pauta onde poderia existir um paralelo é na tributação da renda, que aumentou em Portugal. Mas os detalhes importam: além de ter acontecido no governo anterior, mais à direita, ocorreram também aumentos nos impostos de consumo, já na gestão do Partido Socialista. Recentemente, foram aprovadas isenções no imposto de renda de portugueses que saíram do país durante a crise. Esse benefício tributário para os mais ricos pode chegar até 50%.

Agora, quando a austeridade portuguesa entrega resultados, oportunistas ideológicos pintam como um sucesso de ideias semelhantes às suas. Essa conclusão não sobrevive a uma breve olhada nos dados fiscais portugueses. Focar no nome do partido que venceu as eleições, ignorando reformas e fundamentos, não é análise, nem jornalismo, mas propaganda ideológica pura e simples.

O ajuste fiscal português não é perfeito, mas deveríamos olhar com atenção para aprender com eles. Até o momento, as primeiras lições estão evidentes: a austeridade trouxe ganhos de longo prazo para Portugal, que está em seu melhor momento econômico do século com uma política macroeconômica muito distinta das que são defendidas por PT, PDT e PSOL.