Na semana passada, escrevi aqui uma introdução à economia para otários. Como expliquei no texto, o método desta nobre disciplina é simples: identifique a tribo de um autor e xingue. Na coluna, sugeri que a esquerda era praticante prioritária da economia para otários no Brasil, mas a direita se esforçou nos últimos dias para me contradizer.
Me refiro, especificamente, a certas reações sobre um estudo recente de Laura Carvalho e coautores da USP. Repercutido em primeira mão pela BBC, o estudo sugere que o PIB brasileiro pode aumentar em 2,4% com uma política que aumente a arrecadação do Imposto de Renda e os gastos com o Bolsa Família. Veja bem, caro leitor: não é que eu concorde integralmente com proposta, estudo ou autores. Mas um debate construtivo depende de análises e argumentos econômicos. Ao invés disso, muitos preferiram xingar a USP. Foram induzidos, claro, pelo que costumo chamar de jornalismo supostamente profissional. Afinal, diversos veículos relataram o artigo em questão como “estudo da USP”, como se a universidade assinasse esse tipo de proposta.
Feita a introdução, vamos ao que interessa. Primeiramente, os tais 2,4% do PIB aparecem como resultado de uma análise estática e bastante simples. A estimativa não parece exagerada à primeira vista, mas é importante discutir suas limitações. Pela literatura econômica recente – me refiro, por exemplo, ao artigo “How Big (Small?) Are Fiscal Multipliers” de Ilzetski e co-autores –, sabemos que os multiplicadores fiscais (isto é, os impactos de novos gastos no PIB) diminuem consideravelmente quando falamos de economias emergentes com dívida alta. Caso um aumento do Bolsa Família venha acompanhado por irresponsabilidade fiscal, é provável que aumentos do dólar e do risco-país diminuam bastante o seu impacto na economia.
Os autores do artigo “da USP” (que não é da USP) poderiam replicar, com razão, dizendo que o aumento do Imposto de Renda impediria as suspeitas de irresponsabilidade fiscal. Mas, neste ponto, surgem novos problemas. Os autores não propõem uma reforma estrutural na tributação da renda. Pelo contrário, se limitam a falar em aumentos de alíquotas, mantendo o sistema atual.
Esse desenho traz inúmeros problemas. O primeiro deles é agravar distorções já existentes, o que pode prejudicar ainda mais a economia. Como disse a piada da Duquesa Detax, um dos melhores perfis do Twitter para entender assuntos tributários, seria o IGS: Imposto sobre Grandes Servidores. No setor privado, afinal, ninguém recebe muito dinheiro como parte da folha de pagamento. Em geral, os mais ricos do país recebem dividendos (repasse dos lucros da empresa), que hoje não são tributados.
Fazer um “puxadinho” no Imposto de Renda agravaria alguns privilégios hoje existentes no Brasil. O trabalhador formal, que ganha salário e tem carteira assinada, é explorado pelo sistema tributário brasileiro, de modo que quase ninguém com alto salário deseja receber desta forma. Servidores, por sua vez, pagam menos do que o trabalhador formal e mais do que quem recebe dividendos ou aproveita algum dos inúmeros regimes de tributação especial existentes no Brasil.
Veja bem, caro leitor: já escrevi aqui na Gazeta uma coluna com o sugestivo e impopular título “O IRPF deveria aumentar”. Porém, aumentos na tributação da renda precisam ocorrer com uma reforma profunda, que elimine injustiças e distorções. Por exemplo, boa parte das empresas brasileiras já pagam muitos impostos ao gerar lucro, e por isso são isentas quando repassam parte dele sob forma de dividendos. Tributar os dividendos exige, também, rever a tributação do lucro das empresas.
Após uma reforma profunda, eventuais aumentos na tributação da renda poderiam financiar diminuições de impostos sobre consumo/produção, exageradamente caros no Brasil. Qual o melhor uso para esses novos recursos: redução nos impostos pagos pelos mais pobres ou anabolização do Bolsa Família? Esta é outra discussão que vale a pena.
O Bolsa Família é uma política de extremo sucesso. Se o Estado brasileiro já mostrou que falha em muitas tarefas simples, o fato é que temos competência e eficácia em programas de transferência de renda. O auxílio emergencial reforça esta conclusão. Os dois programas tiveram impacto surpreendente na pobreza, desigualdade e até mesmo serviram como estímulos à economia.
O que nos impede, porém, de financiar aumentos do Bolsa Família com cortes de gastos noutras áreas? A reforma da Previdência, como se sabe, deixou um trabalho incompleto, carente de mudanças estruturais. Novas políticas de corte de gastos são impopulares, mas talvez se viabilizem politicamente caso os recursos economizados acabem destinados a um Bolsa Família. Substituir gastos ineficientes por outros mais eficientes deveria ser uma ideia na mesa.
O contribuinte brasileiro lhe parece disposto a tolerar novos aumentos de carga tributária? Para mim, claramente não. Basta ver no que deram as tentativas dos últimos 15 anos. Se fosse um aumento concentrado nas parcelas mais ricas da população, acompanhado de uma reforma profunda que simplifique o sistema e compensado por diminuições na tributação dos mais pobres, fica muito mais fácil engolir uma ideia desse tipo.
Quando critiquei a tal “economia para otários” na última coluna, não tive a intenção de diminuir o espaço da divergência saudável, e sim aumentar o espaço dos argumentos econômicos. A proposta de aumentar o IR e destinar a receita para o Bolsa Família é bastante interessante quando proposta em termos vagos. E também pode ser interessante em termos concretos – antes disso, precisamos refinar a proposta e criticar seus pontos fracos, como tento fazer acima. Esse refinamento só ocorre com diálogo e respeito à divergência. Xingamentos tribais podem ser divertidos e render likes, mas pouco ajudam na construção de um país melhor.
P.S.: Convido os leitores a continuar o debate na caixa de comentários. Me comprometo a ler e responder os melhores argumentos econômicos sobre o tema.
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