A queda do Muro de Berlim foi vendida ao mundo como vitória final da democracia. Depois das ameaças nazifascista e comunista que marcaram o século 20, a ordem política liberal parecia a única saída para as nações a partir do fim dos anos 80. Nestes anos 2010, muito se fala sobre uma suposta crise da democracia liberal. Uma nova leva de autoritários, da Venezuela à Turquia, aqueceu esse debate.
A gente também discute o assunto. No Brasil, quase todos acham que a democracia está ameaçada por algum grupo político. Divergimos apenas sobre quem ameaça: petismo ou bolsonarismo? Muitos acusam o PT de arroubos autoritárias entre 2003 e 2016 e alertam para os riscos de uma volta do partido ao poder. Outros denunciam traços intrinsecamente autoritários em Bolsonaro e seu governo. Há também quem veja autoritarismo em ambos.
Seja lá qual for a opinião do leitor como eleitor, nesta coluna tento convencê-lo sobre um argumento simples, que independe da sua adesão ao PT ou Bolsonaro: reformas pró-mercado, como as que vêm sendo lideradas por Paulo Guedes e Rodrigo Maia, são antifascistas e anticomunistas, ao mesmo tempo. Se aprovadas, fortalecerão a democracia brasileira contra ameaças.
Há um argumento genérico sobre o caráter democrático desse tipo de reforma, mas ele sofre de um problema fundamental: embora não exista uma relação simples e direta entre crescimento econômico e democracia, o trabalho de cientistas políticos como o polonês Adam Przeworski é convincente ao mostrar que, a partir de certo nível de riqueza, as democracias ficam muito mais sólidas contra ataques externos.
O problema fundamental é que, para concordar com esse argumento, o leitor precisaria assumir que as reformas trarão crescimento econômico. Tenho muitas colunas defendendo o argumento em posts nesta Gazeta, mas entendo que é tema controverso.
Do genérico para o específico, do abstrato para a pauta do Congresso, o argumento fica melhor. Hoje, reformas de Estado deveriam ser uma prioridade para quem se preocupa com a presença de autoritários no poder. O mesmo vale para quem gosta do atual governo, mas teme a volta de ameaças do passado.
A dívida pública está descontrolada e não há como resolver esse problema sem uma reforma profunda que endureça regras da Previdência. A incerteza sobre a capacidade do Estado de honrar suas contas é prejudicial para a democracia, pois a instabilidade econômica favorece rupturas autoritárias. É mais fácil liderar um golpe quando os preços ou a renda são instáveis, com inflação e recessões frequentes que enfurecem a população. Grande parte exemplos históricos do tipo, como o Brasil em 1964, ocorreram em contexto de instabilidade econômica.
Sem reforma, o Estado quebra e nossa democracia pode quebrar junto. Muitos analistas tem ignorado o poder estabilizador que uma reforma da Previdência deve ter sobre a política brasileira.
Outro argumento específico e persuasivo diz respeito à abertura comercial. Assinar acordos de comércio também aumenta nossa defesa contra golpistas de qualquer origem. Diversas cláusulas desse tipo de acordo restringem a arbitrariedade do governo em áreas como a política ambiental. A própria presença do Brasil no Mercosul é vinculada à continuidade da nossa democracia. Quanto maior a integração da nossa economia com o mundo, maior o custo de rupturas autoritárias.
Quem conhece a trajetória recente de Polônia e Hungria sabe por que os impostos são uma ótima ferramenta para o abuso de poder. Através de regimes especiais de tributação, é possível punir empresas inimigas e beneficiar amigas. E a reforma tributária formulada por Bernard Appy, que tramita com celeridade sob a liderança de Rodrigo Maia e Baleia Rossi, restringe a instituição de regimes especiais e compartilha as decisões entre prefeitos, governadores e presidente. Caso seja aprovada, será um entrave e tanto a qualquer projeto tirânico.
Privatizar e fortalecer a economia de mercado também deixa nossa ordem política mais robusta contra ataques. Através de estatais, muito pode ser feito (e financiado), como a história do Brasil deixa claro durante a ditadura militar e em anos recentes. Privatizar é compartilhar poder com gente não-necessariamente alinhada ao governo, o que desagrada quem quer concentrar poder. O mesmo argumento vale para todas as reformas que tornam a atividade empreendedora mais previsível, como desburocratizações e simplificações diversas que estão na agenda política nacional.
Muitas linhas são escritas para denunciar o “comunismo” do PT ou o “fascismo” de Bolsonaro. Nesse processo, perdemos amigos e transformamos o debate público em ambiente árido para o diálogo. Ao invés de perder tempo com discussões sem fim, seria mais produtivo debater aquilo que nos fortalece contra qualquer autoritário, sem viés ideológico. Se prosseguir a aprovação da sua agenda econômica, o presidente pode nos proteger dele mesmo, e de qualquer sucessor que tente atacar a democracia brasileira.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS