Não seria suficiente escrever que o Brasil precisa de um ajuste fiscal por ter contas públicas desequilibradas. O verbo “ter” pode passar a falsa ideia de problema passageiro. A história do nosso país desde a Segunda Guerra deixa claro que não é bem assim.
A derrubada de Getúlio Vargas pelos militares em 1945, a crise que leva ao suicídio dele poucos anos depois, as tentativas de golpe contra JK, a eleição e renúncia de Jânio Quadros, o medo de Jango na presidência, o golpe de 1964, o milagre econômico, o intervencionismo de Geisel, o enfraquecimento da ditadura, as Diretas Já, o fracasso de sucessivos planos de controle da inflação, o impeachment de Collor, o Plano Real, a crise do segundo governo FHC, o tripé macroeconômico de Armínio Fraga, a eleição de Lula, a gestão econômica de Palocci, a mudança de rumo durante o governo Dilma, o estelionato eleitoral de 2014, o impeachment, o fracasso de Temer e a iminente eleição de Bolsonaro são, todos, acontecimentos diretamente relacionados ao descontrole do orçamento estatal.
É importante colocar o problema nessa perspectiva. Assim, o descontrole fiscal ganha os contornos corretos. É um problema como racismo, baixa escolaridade, burocracia ou corrupção: uma constante da nossa história, que empobrece os brasileiros e avacalha nossa democracia.
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A alta inflação foi tão persistente no Brasil porque todos os contratos, a gestão de todas as empresas e toda a atividade econômica realizada no país foi submetida a uma cultura inflacionária ao longo de décadas. Desde os anos 1940, o brasileiro foi aprendendo a se proteger de um país onde incerteza era regra.
Ao longo dos anos, não importa o que o governo prometesse para estabilizar a economia, todos os salários e preços eram reajustados esperando uma inflação alta. Essa indexação total piorava o problema, pois levava os preços a crescerem por inércia, como se a inflação fosse nosso estado de natureza. Aprender a conviver com o descontrole era mais fácil do que resolvê-lo.
O próprio governo era gerido por essa cultura inflacionária. O descontrole orçamentário esteve na origem da alta inflação e a impressão descontrolada da moeda foi um ingrediente fundamental do problema.
No famoso livro didático de Fábio Giambiagi e Ana Cláudia sobre finanças públicas, um funcionário do alto escalão federal explica em duas palavras o método de gestão fiscal durante a era inflacionária: o orçamento era administrado “no faro”. O mundo de fantasia da hiperinflação era o único onde as contas do governo fechavam – e todos aceitavam a enganação. É assustador, mas um orçamento público merecedor desse nome só veio a existir no Brasil em 1997.
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O Plano Real teve sucesso por atuar nessas duas frentes: estabilização macroeconômica e substituição da moeda contaminada pela cultura inflacionária.
Antes do plano em si, houve um movimento de realismo orçamentário. Eliminaram-se muitos “esqueletos” – gastos que não eram considerados como gastos –, enquanto FHC comandava um ajuste fiscal com relativo sucesso no Congresso.
Feita a limpeza, o governo partiu para o URV. A moeda virtual era lastreada no dólar e os contratos nela baseados não podiam ser indexados – ou seja, não podiam prever tantos reajustes automáticos nos preços e salários. Voluntariamente, a população optou pela nova moeda. O governo mudou o nome da URV para Real e correu para o abraço.
Com a cultura inflacionária no chão, FHC agradou a população e gerou um momento de súbita prosperidade. Mas faltava resolver os fundamentos, controlar as contas públicas. O economista Paulo Guedes tem lembrado essa negligência fiscal do primeiro governo FHC em muitas das suas críticas aos tucanos.
No início do segundo mandato, em 1999, a bomba estourou. A taxa de câmbio, uma das bases de sustentação da moeda no pós-Real, não aguentou o tranco de algumas crises externas. À época, muitos analistas projetavam uma inflação superior a 40% ao ano num futuro próximo. FHC quase viu o Plano Real derreter ainda durante seu governo.
Esse cenário catastrófico foi evitado pelo tripé macroeconômico, de implantação conturbada e sólidos resultados. A era do tripé foi a de mais duradoura estabilidade econômica da nossa história, com bom desempenho do mercado de trabalho e substancial redução da pobreza e desigualdade.
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O governo se comprometeu a entregar superávits primários vultosos – ou seja, gastar menos do que arrecada, economizando uma parte para pagamento da dívida pública. Ao longo dos 10 anos seguintes, a dívida caiu e a inflação se estabilizou num inédito patamar de um dígito por mais de uma década.
Não era um equilíbrio sustentável. Nos 20 anos entre 1997 e 2017, as despesas do governo federal cresceram 40% como proporção do PIB – isto é, já descontado o crescimento da economia. O Estado ficou mais pesado.
FHC driblou essa situação com aumentos de impostos e Lula contou com a sorte de uma conjuntura internacional que levou a aumento de receita. Dilma, por sua vez, viu o cenário externo piorar e ainda pisou no acelerador da irresponsabilidade. O tripé não foi suficiente para conter os gastos determinados pela Constituição: a despesa federal cresceu 5,5 pontos percentuais entre 1997 e 2017; destes, 4,4 (ou 80% do crescimento) foram para benefícios previdenciários do INSS ou BPC/LOAS – ou seja, sequer incluo servidores públicos na conta.
Voltamos à estaca zero.
Hoje, o Brasil alcança a proeza de um recorde triplo: é um dos países emergentes mais endividados, com maior carga tributária e maior déficit ao mesmo tempo. Os impostos pesam muito ao cidadão e mesmo assim não são suficientes para cobrir os gastos. Como se não bastasse, a dívida está em trajetória explosiva.
Um problema só se perpetua por toda uma história quando é recorrentemente esquecido. É conveniente para quem manda. Os políticos vão ter que tomar decisões impopulares sem um benefício claro de curto prazo para apresentar como contrapartida.
Sem uma solução, o brasileiro continuará convivendo com juros altos, aumentos de impostos, inflação descontrolada, crises frequentes e democracia instável. É muito difícil encontrar uma ruptura democrática na história sulamericana que não tenha a ver com instabilidade econômica.
Esse é o tamanho do desafio que se coloca aos brasileiros nos próximos meses: imenso, histórico, duro, mas com imensas recompensas caso enfrentado com sucesso.
E o que encontramos nas eleições, justamente quando o problema deveria ser resolvido?
Jair Bolsonaro propondo reformas tributárias e da previdência que levam ao aumento do déficit público, enquanto acena com propostas que nem arranham o problema, como a redução de ministérios.
Fernando Haddad, por sua vez, ainda tem vergonha de reconhecer os erros de Dilma e acha que a prioridade para reduzir os juros é partir para cima dos banqueiros, ao invés de diminuir a incerteza fiscal.
Prepare-se, eleitor: o próximo presidente vai enfrentar esse assunto em 2019. E aí vocês vão entender porque ele não quis falar sobre isso durante a eleição.
Sonho com o dia em que vamos eleger um presidente para enfrentar problemas diferentes. Se os candidatos governarem com a mesma responsabilidade fiscal que mostraram na campanha, tudo indica que o Brasil vai continuar sendo esse país meio esculhambado com o qual nos acostumamos.
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