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O título do meu primeiro texto nesta Gazeta do Povo, ainda em 2018, foi “Bolsonaro não é Médici, mas tem cheirinho de Chávez”. Insisti na ideia noutras colunas. Se foi chato para você, caro leitor, saiba que escrever a mesma coisa várias vezes foi ainda mais chato para mim. Infelizmente, a pauta fica mais importante a cada dia. Afinal, de 2018 para cá, até a Polícia Federal ficou empesteada pelo tal cheirinho de Chávez.
O número de delegados punidos após investigar aliados do governo chega à casa das dezenas. A quem busca uma reportagem profunda sobre o caso: a leitura do texto “O Aparelho”, publicado pelo jornalista Allan de Abreu na revista Piauí, é fundamental. Além da matéria, há as denúncias de Sergio Moro. Ou o vídeo da reunião que levou à saída de Moro. Nele, Bolsonaro confessa que queria afastar o diretor-geral Maurício Valeixo porque tinha medo da PF “morder” a sua família – o verbo era outro, o que não muda é o aparelhamento.
Os traços chavistas do bolsonarismo não foram os únicos temas recorrentes desta coluna. Também escrevi repetidamente sobre como a estupidez governante vem asfaltando o caminho de Lula ao Planalto. Em todas as colunas nas quais escrevi esta obviedade, lulistas involuntários se revoltaram. Agora está feito o estrago.
Outro tema recorrente foi a morte da agenda de reformas. Especialmente em 2021, as propostas apresentadas ao Congresso têm um objetivo explícito: ajudar a reeleição. Não há mais uma agenda propositiva, apenas o baixo jogo eleitoreiro. Para convencer o Congresso a trabalhar por seus interesses privados, o governo criou o orçamento secreto. Esse escândalo envolve valores bilionários como os do petrolão, cooptação do Congresso em estilo mensaleiro e um desrespeito à transparência que remete ao caso das pedaladas.
Tal como petistas fizeram em todos estes escândalos, bolsonaristas garantem que não há nada de anormal no comportamento do presidente, que apenas repete o padrão dos seus antecessores. Qual a base factual dessas afirmações? A mesma das mentiras de outrora: nenhuma. A defesa do grupo é mais importante que fatos e princípios.
A cara de pau não surpreende. O bolsonarismo é um típico movimento populista – me refiro, especificamente, à conceituação que vem sendo construída por cientistas políticos como o holandês Cas Mudde. Populismo, nesta definição, é uma ideologia fina. A finura é literal: a ideologia do populista não é encorpada por um conjunto de propostas para a sociedade. Em casos extremos, tudo se baseia na constante divisão da sociedade entre o grupo do bem e o grupo do mal.
O “bem”, claro, é a própria militância populista. O inferno são os outros, mesmo que sejam ex-aliados. Há traços populistas em várias tribos políticas, mas a tribo bolsonarista é um exemplo extremo desse comportamento, sendo muito mais populista do que os principais candidatos adversários. Vale lembrar que o diretor-geral da PF foi o mesmo entre janeiro de 2011 e novembro de 2017: Leandro Daiello. Ou seja, Dilma deixou a PF “morder” o PT e seu governo. Para o bolsonarismo, o vazio programático está acima de tudo e o ódio está acima de todos.
A militância populista, após algum tempo de repetição, passa a automatizar suas reações: ao detectar que um mensageiro não é aliado, a ordem é atacar sem dó. Nos últimos dias, Ivete Sangalo aprendeu muito sobre o que estou falando. No último ano e meio, Sergio Moro aprendeu a mesma lição.
Quando alguém ataca o populista-em-chefe, notícia falsa é mato. Alguns jornalistas checam e desmentem, mas a militância não aceita informação que venha daqueles que são “do mal”. Os apoiadores de populistas incapacitam a si mesmos e já não conseguem participar de diálogos construtivos com quem está fora da tribo.
O comportamento me lembra um poema de Ruy Proença - curiosamente, o título é “Tiranias”. O autor contrapõe as tiranias antigas, nas quais as paredes tinham ouvidos, e as novas, nas quais os ouvidos têm paredes. Alguns anos atrás, eu provavelmente veria o trocadilho como um clichê qualquer. Infelizmente, há uma boa dose de sabedoria nesses versos.
É triste escrever isso pela enésima vez, mas o Brasil está trilhando o caminho da tirania. Será difícil reconstruir o país. Desconfio que o primeiro passo seja derrubar as sólidas paredes que tapam muitos ouvidos.
Despedida
Comecei a coluna rememorando textos anteriores e foi de propósito – afinal, este é meu último texto por aqui. Há algumas semanas, comuniquei à direção da Gazeta do Povo o meu desejo de interromper a coluna. É uma decisão pessoal, pois pretendo dedicar mais tempo a novos projetos. Agradeço publicamente à Gazeta, que sempre me deu total liberdade e me permitiu conhecer excelentes colegas. Em especial, agradeço aos leitores e assinantes que acompanharam a coluna nos últimos 3 anos e meio.
Como mensagem final após um texto tão pessimista, fica o meu desejo por um futuro melhor para todos: estamos no mesmo barco e, se ele afundar, afundaremos todos.