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Hugo Harada/Arquivo Gazeta do Povo
Hugo Harada/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Quase todos os candidatos à Presidência apontaram a universalização do saneamento como um das maiores desafios do Estado brasileiro. É um bom consenso. Infelizmente, quase todos foram perguntados sobre a viabilidade orçamentária da proposta, ainda que ninguém duvide dos seus benefícios para a sociedade. Enquanto a dívida pública estiver em trajetória explosiva, novos sonhos de curto prazo soam impossíveis.

É decepcionante não poder lidar com um desafio do século 19, que traria retorno indiscutível na saúde dos brasileiros. Para que o leitor não fique depressivo com a situação do país, proponho um exercício de imaginação: e se fosse possível resolver o problema do saneamento em apenas um ano, deixar o metrô de São Paulo com o tamanho do de Londres em 2020, fazer o mesmo no Rio de Janeiro em 2021 e seguir nos anos seguintes. Nessa utopia, seria possível equiparar as metrópoles brasileiras ao que há de melhor no transporte público mundial em velocidade recorde.

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Quanto custaria? Cerca de 5% do PIB brasileiro, menos de um quinto dos gastos federais ou pouco mais de R$ 300 bilhões anuais. Para abrir esse espaço no orçamento, bastaria gastar com previdência o mesmo que países com população em faixa etária semelhante. Para citar outro exemplo, a expansão do BNDES durante os governos Lula e Dilma teve um custo total próximo aos das estimativas sobre universalização do saneamento.

Não precisamos nem sequer de muita ambição: se o objetivo for dobrar todo o valor gasto em bolsas de pós-graduação e manutenção do patrimônio histórico, bastaria economizar 1% do que se gasta em previdência.

Em resumo, muitos problemas brasileiros têm soluções que cabem no orçamento federal e mesmo assim são inviáveis sob o ponto de vista do orçamento. O Estado consome cerca de 40% da renda nacional, é muito maior do que a média de países emergentes e, mesmo assim, não chegava a repassar para o finado Museu Histórico Nacional, anualmente, o salário mensal de um jogador do Vasco.

A constitucionalização do orçamento colocou uma camisa de força na democracia brasileira, que passou a definir suas prioridades fiscais no modo aleatório. O custo político de alterar a Constituição é alto demais, impedindo os governantes de governar.

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Em 2017, a arrecadação líquida do governo federal não foi suficiente para bancar os gastos obrigatórios conforme a Constituição, principalmente devido às regras de previdência e carreira do funcionalismo público. Não sobra um centavo para outros investimentos, nem mesmo a manutenção de prédios públicos. Seja qual for a sua opção em outubro, o próximo presidente não terá liberdade para alocar o orçamento conforme as prioridades do país.

Quando reformas entram em discussão, há quem denuncie como ataque à democracia brasileira. O oposto é muito mais verdadeiro: o adiamento das reformas impede que o governo atenda aos anseios do povo.

Mudar o sistema de previdência ou permitir demissões em algumas áreas do Estado não é rasgar o Estado de Bem-Estar, mas a única saída possível para que o combate à injustiça social seja mais efetivo do que tem sido. As escolhas sobre como gastar o dinheiro público não podem ser fossilizadas na Constituição, com regras que ignoram a conjuntura do país.

A constitucionalização do orçamento leva a ajustes fiscais socialmente injustos e feitos sem a mínima coordenação. No sistema atual, quando o governo precisa cortar gastos para impedir que a dívida saia do controle, gastos com aposentadorias e salários crescem como se nada estivesse acontecendo, enquanto investimento público, cultura e ciência sangram desproporcionalmente, com cortes ferinos.

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Muitas polêmicas recentes derivam desta democracia em modo aleatório. Do dia para a noite, doutorandos descobrem que sua bolsa pode ser cortada, ou o Museu Histórico Nacional é consumido pelas chamas por falta de manutenção, e todos nós perguntamos: se custa tão pouco, se toda a sociedade valoriza esse gasto público, como é que um corte desses pode acontecer?

Estamos todos escandalizados com as prioridades escolhidas pelo Estado, mas é politicamente custoso alterar essas escolhas. Muitos sindicatos do setor público estão a postos para fazer lobby contra qualquer debate que lhes prejudique. Seja qual for o assunto, logo aparecerá um órgão como a ANFIP, sindicato de fiscais da Receita, disposto a lançar sucessos como “não existe déficit na previdência” ou “metade do orçamento vai para juros da dívida”.

A FIESP tem bancada e o funcionalismo também. As crianças cujo desenvolvimento cerebral são prejudicadas pelo consumo de água suja (e ainda serão obrigadas a sustentar um sistema de previdência irracional) nem sequer possuem voto. Mais do que a estabilidade macroeconômica, a maior vítima da ausência de reformas tem sido a democracia.

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