Uma esquerda realmente preocupada em combater pobreza e desigualdade, em formular políticas sociais de verdade no Brasil, deveria ter a reforma previdenciária como prioridade número 1. O sistema previdenciário é inimigo número 1, 2 e 3 de quem pretender construir um Estado de Bem-Estar Social no país. Se não é isso que acontece, se nossa esquerda combate a reforma previdenciária com unhas e dentes e mentiras sindicais, esse é um fenômeno que merece atenção.
O Estado brasileiro promete “tudo pelo social” desde os tempos em que esse era o slogan de José Sarney. Nessa toada de promessas que se intensificou desde 1988, o setor público já absorve quase 40% da nossa renda para financiar suas políticas. Entrega entre pouco e muito pouco.
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Em 2019, há brasileiros bebendo água misturada com fezes. Mais ou menos metade dos compatriotas não tem tratamento de esgoto. A criança pobre que bebe água suja durante o período de desenvolvimento cerebral terá danos irreversíveis ao longo da vida. Escolas ruins e crimes que compensam entram em jogo para completar o estrago. Não é aceitável que um Estado custe tanto sem livrar as crianças de problemas de séculos passados.
Desde a Constituição de 1988, o Estado vem investindo cada vez menos em obras de saneamento, mobilidade ou de qualquer tipo. Investimentos em infraestrutura contam para o governo como gastos discricionários, que ele pode cortar livremente de um ano para outro. Enquanto isso, o orçamento é progressivamente consumido por gastos obrigatórios, determinados pela Carta Magna. Como resultado, períodos de crise nos levam a cortes bruscos no investimento – e compressão de gastos realmente eficientes, como o Bolsa Família.
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No ano passado, li Valsa Brasileira, de Laura Carvalho, que vem despontando como referência entre os economistas da esquerda brasileira. Fiquei surpreso com o modo como Laura odeia consequências sem se importar com as causas.
Laura critica severamente o governo Dilma por não ter financiado investimentos através do Tesouro Nacional. Dilma, como se sabe, escolheu o caminho das desonerações e subsídios via bancos públicos, que não geraram o resultado esperado. Mas Laura relega a reforma da Previdência a assunto de segunda importância, ignorando que os gastos crescentes foram responsáveis por comprimir os investimentos em infraestrutura.
Subsidiar o investimento privado foi a única alternativa de Dilma porque ela não tinha espaço fiscal para usar o orçamento público – e também pela notória incompetência que marcou toda a gestão dilmista. Laura, advogada dos investimentos públicos, deveria ser a primeira a levantar a bandeira de uma reforma duríssima, que abrisse espaço no orçamento para gastos com maior retorno.
Se os investimentos são protagonistas do programa esquerdista no front macroeconômico, as políticas de combate à pobreza e desigualdade supostamente são as prioridades no front micro. E o maior vilão destas, novamente, é a ausência de reforma previdenciária.
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Um interessante estudo de Pedro Souza e Marcelo Medeiros estimou que cerca de 20% da desigualdade brasileira entre 2008 e 2009 era explicada pelas transferências do regime previdenciário. Partidos de esquerda muito falam sobre o combate à desigualdade pela via tributária, aumentando impostos para os mais ricos, mas dão bem menos atenção às mudanças no lado da despesa pública.
Outro estudo interessante é a revisão de literatura de Roberto Amaral dos Santos, da FGV paulista. Nele, Roberto mostra que análises mais amplas sobre a relação entre Previdência e desigualdade chegaram, no máximo, a conclusões controversas e nebulosas.
Ou seja, o mais caro dos programas sociais brasileiros tem impacto nebuloso, talvez negativo, na pobreza e desigualdade. E poucos lembram que, quando falamos em déficit previdenciário, nos referimos ao financiamento da Previdência através de impostos comuns, que pesam mais no bolso dos brasileiros mais pobres e se destinam ao bolso dos mais ricos.
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Nosso regime previdenciário deveria ser tratado pela esquerda como um desastre. Hoje, é o maior inimigo de quem defende um Estado de Bem-Estar Social no Brasil, assim como daqueles que enxergam nos investimentos de infraestrutura uma saída para o baixo crescimento.
Os valores que supostamente guiam a esquerda brasileira não se manifestam no debate sobre a reforma previdenciária, no qual esta prefere se alinhar a servidores privilegiados e a brasileiros no topo da pirâmide social. Não é uma dissociação fácil de entender, mas desconfio que a explicação seja mais fácil para psicólogos do que para economistas.
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