Não há ficção sem realidade, ensinou Eduardo Coutinho. A matéria-prima de seu cinema era a vida, com toda a sua complexidade flutuante: dramas, incertezas e improvisos. Seu jeito de contar histórias bagunçou fronteiras e nos fez, ao mesmo tempo, duvidar do verossímil e acreditar no impossível. Pense no filme Jogo de Cena (2007), em que atrizes interpretam mulheres que contaram suas histórias de vida ao cineasta. Coutinho era mestre em borrar definições.
Toda faculdade de jornalismo deveria estudar a “arte da entrevista segundo Coutinho”. Era impressionante a maneira como mergulhava em seus personagens, às vezes sem pedir licença. Sua grande meta era buscar o sublime pessoal – reveja a entrevista com o Sr. Henrique, em Edifício Master (2002) – e a estrada para isso era feita de perguntas sempre diretas e demasiadamente humanas. Eduardo Coutinho sabia ouvir, e aproveitar o silêncio, que pode dizer muito se for compreendido.
Suas obras têm um rigor único. Coutinho fazia pré-entrevistas – tática utilizada tanto para quebrar o gelo quanto para saber o que realmente perguntar quando a câmera estivesse ligada. Filtrava muito. Tinha uma paciência hercúlea.
Também era apaixonante sua capacidade de recriar as ditas “jornadas do herói” — trajetórias edificantes de vida. Mas, ao invés de buscar grandiloquência e um final com fogos de artifício, Coutinho fazia dos paradigmas de Joseph Campbell algo intenso e, sobretudo, humano. O semidocumental Cabra Marcado Para Morrer (1985), sua obra-prima, dá cor à história do camponês João e desvenda o mito do herói no sujeito anônimo. O cinema de Eduardo Coutinho é humilde, enfim.
Sua morte, hoje, é daquelas peças tristes e inexplicáveis da vida. E com um sutil toque de ironia: especialista em burlar as regras que regem ficção e realidade, Coutinho foi vítima, ao que tudo indica, de seu filho esquizofrênico, que decidiu fugir da vida real — cheia de tormentos insuportáveis – para avançar em direção a uma ficção momentânea e solitária. Descanse em paz, Coutinho. E obrigado por ajudar a fazer com que nossos olhos sejam menos domesticados.
Cena emocionante de Edifício Master, quando o Sr. Henrique, fã de Frank Sinatra, canta My Way com a alma:
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