Um amalucado norte-americano de nome Walter Thompson teve o privilégio de viver a efervescência de Woodstock, cidade famosa pelo festival de mesmo nome que entortou o eixo da Terra em 1969. Ex-aluno da Berklee College, Thompson mudou-se para lá em 1974, época em que a cidadezinha ainda era um mundinho musical paralelo, repleto de possibilidades. Em uma casa de campo, Thompson tinha o hábito de convidar amigos para jam sessions — entre eles John Cage e Santana.
Embalado talvez pelo ar de Woodstock, o músico criou uma espécie de orquestra, cujo foco era a experimentação jazzística através de gestos que surgiam, aqui e ali, para dizer ora “prolongue essa nota”, ora “toque mais alto.” Tinha início, assim, o soundpainting.
A técnica de regência criativa começou com 45 gestos, e hoje tem mais de 1.200. A estrutura é relativamente simples: um maestro, através de sinais, indica o que, quando e como músicos devem agir. Cria-se então, a cada concerto, uma composição em tempo real, totalmente intuitiva e transdisciplinar – bailarinos, atores e artistas plásticos também participam de alguns concertos. Porque existe uma única linguagem, independente da nacionalidade de quem a “lê”, o soundpainting é uma espécie de esperanto da música.
Curitiba receberá uma oficina da técnica entre os dias 8 e 10 de julho – abaixo, o serviço completo. O “maestro” será Lucas Kohan, argentino e discípulo de Walter Thompson, que começou a ensinar o soundpainting em 2010. Kohan concedeu uma entrevista por email, profunda e esclarecedora, em que define a técnica como “um organismo vivo de improvisação” e pede espaço a outras formas de expressão. “A palavra nos engessa em conceitos muito intelectuais e pouco orgânicos, sobretudo na arte.”
De que forma o soundpainting interferiu em sua percepção musical?
A mudança foi muito grande. No começo, era como um jogo para liberar nossa linguagem musical — poder interagir com pessoas e incorporar isso às aulas de músicas e de instrumento. Em seguida, o soundpainting foi transformando minha forma de conceber a música, a composição e a arte ao vivo de maneira geral. Muitas coisas dificílimas de escrever em partitura se transformaram em algo simples. Por exemplo, fazer um loop pequeno ou grande, mudanças bruscas entre cantar, falar e tocar um instrumento. Para escrever isso é muito complicado. Mas minha experiência musical, com o soundpainting, se tornou mais viva e orgânica. E permitiu unir a música com outras disciplinas como o teatro e a dança, que me interessam muito também.
Qual a importância do soundpainting hoje?
O soundpainting é uma linguagem muito inclusiva. Muito horizontal. Se há um maestro, é para ordenar o material e aproveitar os recursos de cada pessoa ou grupo que participa. Além disso, podem haver dois ou três maestros simultaneamente. Essa ferramenta permite retirar o melhor de cada pessoa, porque se trata de uma improvisação constante. E algo muito importante: não existem erros. O que pode acontecer é que os sinais não sejam compreendidos, ou o intérprete esteja cansado e pare de tocar ou dançar. Porque a técnica trabalha diretamente a comunicação entre as pessoas sem o uso de palavras. A palavra nos engessa em conceitos muito intelectuais e pouco orgânicos, sobretudo na arte, mas em outros âmbitos também. No soundpainting se usa a palavra como poética, como música. Hoje em dia essa linguagem está começando a ser utilizada na educação e no mundo empresarial para trabalhar a interação e a criatividade. O importante, nesse sentido, é que ela permite uma grande liberdade individual e uma possibilidade de uma harmonia completa com todo o grupo. Acho que isso pode ser muito poderoso.
As oficinas e concertos de soundpainting mudam de um país para outro?
A linguagem do soundpainting tende a ser universal. Em todo mundo ocidental, há muitos gestos que são comuns, ou parecidos, como estender o braço e mostrar a palma da mão para dizer “espera!”. As oficinas têm um mesmo programa, em geral, para todos os países e regiões, mas se adapta a usos e costumes de cada lugar. Isso eu levo em conta. No Brasil, há um grande conhecimento de música e de ritmo – para quem chega de fora, isso é evidente. Um amigo meu, grande flautista, diz que no Brasil há uma “forte classe média musical.” É dizer que, além de grandes profissionais, milhares e milhares de amadores sabem tocar no violão temas de Tom Jobim, por exemplo, que é algo bastante elaborado. Na hora da aula, isso aparece. Por isso eu trato de aproveitar esse conhecimento, levando-o à prática no soundpainting. Quanto aos concertos, eles mudam porque trabalho sempre dividindo a cena com músicos locais. Sempre surge algo novo.
O que passa na cabeça do maestro quando ele faz os gestos com as mãos? O que ele espera dos músicos?
Isso é muito interessante. O maestro vai criando o que deseja em tempo real, e com a prática os movimentos chegam a ser tão naturais como cantar uma nota ou dançar. Uma imagem ou ideia começa a surgir desde o corpo. Por exemplo, se o maestro é enérgico com o movimento, isso se traduz no som do grupo. Porque a imagem mental ou ideia, ou inspiração, não é somente o conceito, por exemplo, de “som de nota longa”. Quanto mais se pratica a técnica, mais sutis podem ser as variantes. Então, o maestro expressa um sinal de “nota longa” com um gesto corporal. E, se o grupo está atento e sensível, isso será traduzido como se todos fossem um instrumento, porque se trata de um organismo vivo de arte. Ao mesmo tempo, há que se fazer um trabalho para que todos estejam na mesma sintonia. Por isso tudo começa com exercícios corporais e interação grupal. O que o maestro espera dos intérpretes é uma boa comunicação. Ou uma comunhão. Por outro lado, como é um organismo vivo de improvisação, o grupo pode devolver ao diretor algo muito diferente do que ele pensou ou imaginou. E essa é uma das questões mais ricas e poderosas da técnica. Esse tipo de surpresa leva o diretor a lugares que ele nunca havia imaginado. Lugares muito mais interessantes, arriscados e revolucionários do que se pode pré-conceber.
Para os que irão fazer a oficina, qual seu conselho?
Que venham abertos e permeáveis, dispostos ao jogo. Aqui não há erros e o trabalho é com o que pode ou o que quer fazer cada um. Isso nos prepara para estarmos soltos e cômodos, todos, inclusive eu mesmo. Deixemos “a cabeça” para o momento posterior, em que assimilamos toda a experiência.
Serviço
Oficina de soundpainting com Lucas Kohan
Dias 8, 9 e 10 de julho, das 9 às 13 horas.
Espaço Mímesis (Rua João Manuel, 74).
Investimento: R$ 40.
Mais informações: www.soundpaintingcuritiba.blogspot.com
* Lucas Kohan também ministra oficinas de soundpainting na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap) na sexta-feira (5), às 18h30 e sábado (6) às 8h30. Inscrições pelo site www.embap.br
* Na noite de sábado (6), o argentino sobe ao palco do Esquina D’os Borges (R. Gonçalves Dias, 712) em companhia do músico curitibano Felipe Cordeiro. “Folclore argentino, músicas autorais e soundpainting” estão na programação.