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James no Cine Joia: resistência versus decadência e o “não tempo”
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São 19h05 e o trânsito em São Paulo, para uma segunda-feira véspera de feriado, flui incrivelmente bem. O problema é o taxista. Mesmo com a ajuda de um GPS, ele se bate para encontrar o Cine Joia, local do único show que a banda britânica James fez no Brasil.

“Fica na Praça Carlos Gomes, número 82, perto da Estação Liberdade do Metrô”, digo, já meio indignado ao ver o taxímetro multiplicar os dígitos loucamente. “Recalculando a rota”, informa friamente o aparelho. “Recalculando a rota”, ouvimos de novo. As flechas malucas e coloridas apontam para diversas direções ao mesmo tempo, e a distância calculada até o destino varia incrivelmente de 150 m a 1,5km.

“Quer saber? Me deixa aqui mesmo. Vou a pé e pergunto como chega lá. Não deve ser longe.” “Ok. Vou dar cincão de desconto pela rodada aí, tá? Desculpa. É que esses aparelhos ficam malucos às vezes”, diz o taxista, me enganando diplomaticamente.


James nos anos 80: destaque esquecido da cena “Madchester”.

A passagem de som para o show que o James faria no Cine Joia, no último dia 30, estava marcada para 19h45. Presenteando os fãs brasileiros de longa data, o grupo forneceu ingressos especiais a quem participa da comunidade dos britânicos no site wearejames.com, que permaneceu na ativa mesmo quando o James silenciou seus trabalhos, em 2001.
E o Cine Joia não podia ser longe dali.

Tudo o que eu precisava era ir na direção certa.

“A Estação Liberdade é pra cá?”, perguntei a um senhor carrancudo que saía do trabalho. “Sim, é só descer aí. Fica do lado direito”.

No caminho – andei por oito quadras – refleti sobre toda a situação em que tinha me metido: havia trabalhado de manhã, engoli algo fingindo que era almoço e fui direto para outra cidade, tudo para ver o show de uma das bandas que mais ouvi na vida. Em cena quase patética, eu carregava uma mochila nas costas. Nas mãos, balançava uma pequena mala verde, que bem poderia estar em um filme de Truffaut. Mas àquela altura eu não sabia exatamente onde estava. Nem se o esquema do ingresso vip ia realmente dar certo, já que o email veio com informações desencontradas, e em inglês. Mas era James, oras. Era? Eu ainda duvidava.

Então as luminárias (em forma de globo ), a cor dos postes (vermelha), e os muitos orientais que andavam devagar pela região me diziam que havia chegado na Liberdade. Logo vi a estação de metrô, sem muito movimento. Agora, pensei, é o momento de perguntar onde fica o Cine Joia.
“Atravessando a rua. Fica naquele bequinho ali,” me informou um vendedor de jornais. Andando rumo à escuridão, vejo um grupo de pessoas, uma van prateada e três seguranças. Era ali.

Eu iria ver James num bequinho.

Hobbit e James Blunt
O Cine Joia fica numa rua secundária, estreita, escura e feia. Há pouco movimento e a casa de shows é circundada por construções abandonadas e pichadas. Ao lado, há um Centro Espírita que “atende diariamente”. Fazia um frio curitibano em São Paulo.

São 19h40 e digo ao segurança que tenho direito a entrar antes e ver a passagem de som daquela banda incrível, da qual sei detalhes inúteis.

Me dão um crachá bonito, que logo ostento no pescoço, como todas aquelas cerca de vinte pessoas que estão na mesma situação de, digamos, privilégio conquistado. “A entrada será liberada às 20 horas”, me informa um rapaz agitado. Sigo para o final da pequena fila, tiro a mochila e coloco a mala no chão. E aí ouço confissões que me dariam dicas sobre o público que estaria comigo naquela noite.

Encapotado em um paletó listrado e numa boina marrom de veludo, um sujeito baixinho e parrudo começa a falar de Batman Begins. Alguém da banda tinha feito uma ponta no filme, eles disseram, me ultrapassando, droga, no quesito “maior fã de James do mundo.”

“Só vai cair a ficha quando eu ver o Timzão lá”, disse logo depois o mesmo sujeito, referindo-se ao vocalista Tim Booth. A expressão que usa resume a idade que tem. O curioso, nesse caso, é que quem o acompanha é o filho adolescente. O garoto de olhos verdes passa frio e aperta o capuz em sua cabeça. “É, moleque. Teu pai te balançava no berço ao som de ‘Laid’”, lembra um outro homem, possivelmente tio do guri friorento.

A conversa prossegue, ainda cinematográfica. “Tentei ver Os Vingadores. Tudo lotado”, brada o da boina. “Mas não vejo a hora de ver O Hobbit. Esse sim!”, se anima. Talvez não seja tão difícil assim reconhecer um fã de James.

Já perto das 20 horas, alguém pede para que a fila seja organizada. Então a deixamos mais indiana do que brasileira, e nessa brincadeira acabo perdendo umas cinco posições. Na minha frente, agora, está um rapaz de casaco vermelho da Adidas. Tem uns 30 e poucos anos e uma estranha cabeça ovalada. “É complicado, é muito complicado”, diz ele a um amigo, tentando ainda se convencer de que o show realmente iria acontecer. “Quando vi que anunciaram, pensei: será que não é James Blunt”?

“Perguntas?”
Entramos no Cine Joia só às 20h30. Foi este mesmo lugar que recebeu recentemente as bandas The Vaccines e Nada Surf. A ideia, paradoxalmente criativa, parece ser trazer bandas que não lotam shows.

O Cine Joia é aconchegante e escurinho. No térreo, há um grande bar em formato de octógono. Atrás, há o acesso à chapelaria, aos caixas e ao lugar onde servem chopp. Na frente, um palco bem alto. Há um balcão também, em cima, que estava fechado naquela noite.

As vinte pessoas de crachá entraram e viram metade da banda no palco, mexendo em cabos e afinando instrumentos. Como se estivessem frente a uma aparição, simultaneamente congelaram suas expressões. Três corajosos deram mais alguns passos, de braços cruzados. Até que Saul Davies, guitarrista e violinista, disse “hi”, que soou como um “bu!”.

Comparativamente – para nós, os de crachá — era como se um artista plástico visse de que maneira Picasso prepara sua aquarela. Como se Tarantino nos guiasse por seu set de filmagem, ou, para os fãs de futebol, experimentar o clima de vestiário em uma final da Copa do Mundo. Não fosse isso, exteriorizar a relação passional com o que víamos, seria chato demais ouvir músicas pela metade, instrumentos desafinados ou um técnico de som de cabelo estranho dizendo aos berros “stop, please”, criando a cada cinco minutos um coito interrompido em quem já cantava e dançava feliz da vida.

Tímidos aplausos foram ouvidos quando Tim Booth surgiu, vestindo uma calça de moletom larguíssima, uma camiseta qualquer e uma jaqueta marrom. Um gorro puído escondia a careca e parte das orelhas. Parecia que tinha acabado de acordar, e falou de maneira soturna e irônica: “Bem-vindos à passagem de som. Vocês escolheram isso, não tenho culpa”.

Divulgação
O vocalista Tom Booth, nos dias de hoje.

Foram quatro músicas em vários takes, e duas delas estariam no show de logo mais – “Johnny Yen” e “Hey Ma”. No meio de tudo, Tim queria conversar. “Perguntas?”, dizia o inglês, com aquele sotaque gutural de Manchester.

Havia sempre um silêncio antes de cada questão. Era como se a miniplateia estivesse ao mesmo tempo com medo e afoita. E as respostas foram lacônicas, mas simpáticas.

“Vocês estão preparando algo de novo?”, perguntou alguém. “Não. No momento não”, disse Tim. “Mais perguntas?”, disparou ele, colocando um pé sobre a caixa de retorno.

“Como é o processo de criação da banda?”, quis saber um fã.“Ah, eu escrevo a maioria das músicas, mas sempre ganho contribuições do Larry [Gott, outro guitarrista] e do Jim [Glennie, baixista],” respondeu Tim, letrista de mão cheia.

A flor
A situação fã x artista se inverteu quando uma mulher baixinha ergueu o braço timidamente e chamou a atenção de Tim. Ela levantou a calça e mostrou sua perna. Perto do pé direito, a tatuagem revelava uma flor de pétalas brancas e miolo roxo: é o símbolo da banda. Larry saiu correndo do palco com a máquina fotográfica em punho e foi correndo registrar aquilo. “Incrível”, disse o britânico.

A banda tocou mais uma música e Tim Booth fez a pergunta derradeira. “Como está o som? Tudo ok?”. “Perfect!” O grito soou entusiasmado. Mas convenhamos. Mesmo que a guitarra estivesse com as cordas invertidas, que a bateria se transmutasse inexplicavelmente em bongô e que Tim Booth desse uma de Kelly Key, ninguém iria reclamar. Não naquela hora.

Madchester
A banda James foi formada em Manchester, em 1982, e foi essencial no movimento de pop alternativo que se denominou posteriormente de Madchester. Da cena, despontaram ótimas bandas contemporâneas ao grupo, como Stone Roses e Happy Mondays. Estas ganharam muito mais notoriedade, apesar de todas, inclusive o James, estarem sob a batuta da lendária gravadora Factory.

Há explicações possíveis para o relativo insucesso da banda. A falta de autopromoção, a discografia flutuante, apesar dos muitos “hits” e da colaboração genial de Brian Eno, e a própria cena de Manchester, qualitativamente autofágica, já que revela uma banda boa atrás da outra ainda hoje. É só pensar em Oasis, o caso emblemático.

Depois da parada de 2001, o James voltou à ativa em 2008, lançando o EP The Night Before e o disco The Morning After (2010).

Ossos e carvão
Era meia-noite e meia quando a banda subiu ao palco do Cine Joia. Havia cerca de 600, 700 pessoas, para ver o grupo, que hoje excursiona com sete integrantes. Da formação original, estão o vocalista Tim Booth e o baixista Jim Glennie. Gott entrou em 1983, e participou do primeiro disco, Stutter. Completam a atual formação Saul Davies, na guitarra e no violino; Mark Hunter, nos teclados; David Baynton-Power, na bateria; e Andy Diagram, no trompete.

“Dust Notes”, música de The Morning After, abriu o show de forma serena. Tim Booth tem uma voz realmente incrível. Seus agudos são penetrantes e o controle que tem sobre a melodia lembra o que poderia fazer um Ney Matogrosso, caso ele fosse roqueiro. A música foi cantada por muitos, mas não todos, já que a maioria, mesmo lá, esperava por “Sit Down”, “Born of Frustration”, “Laid” e cia. Pequenos hits.

“Laid”, aliás, foi a quinta do setlist. Tocada em sua versão original, a música que já foi detonada em uma versão para a trilha de American Pie deixou um gosto de quero mais. Foi tudo rápido e intenso, e por um momento me questionei. “Já foi?”.

Em “Born of Frustration”, a catarse. Nos shows da Inglaterra, Tim Booth tem a mania de ir no meio da plateia, cantar e dançar. Ninguém imaginava, entretanto, que ele faria o mesmo aqui no Brasil – e sem avisar ninguém.

Então seguiu o careca de cavanhaque, com sua regata listrada. Passou por uma multidão que não entendia bem o que acontecia, desviou de mãos marotas, de empurrões, de abraços furtivos e se aproximou do mezanino do bar central. O lugar em que sentou era de vidro. Dentro dele, havia uma decoração bizarra de ossos sobre carvão. Com cuidado – e cantando sem interrupções — ele subiu ali. O barman o olhava de soslaio, com um sorriso bobo na cara. Foi assim:

Tim Booth estava há 3 metros de mim e confesso que não sabia o que fazer. Se cantava, se erguia as mãos. Se tirava uma foto ou se filmava aquilo, como a maioria fazia. Tirei algumas fotos – que ficaram uma porcaria – e decidi aproveitar o momento indubitavelmente único. Em outra música, imitando o patrão, o trompetista também subiu no mezanino. Ele vestia uma camisa da seleção brasileira, com nome e número nas costas: James. 7.

Na sequência, “Say Something” fez o que se esperava: levou muitos às lágrimas. A música é realmente grandiosa, e ao vivo ganha em sentimento. Há uma contradição estranha entre a densidade da canção e os movimentos de Tim, que ora lembra uma lagartixa em apuros, ora um Morrissey mais invocado. O resto da banda é quase impassível, talvez em busca de equilíbrio.

“She’s a Star” e “Sit Down” formaram um coro majestoso. Já no bis, “Come Home” e “Getting Away With it (All Messed Up) deram um choque em todos. Ao olhar para o lado, viam-se sorrisos espontâneos e duradouros. Quase ninguém conversava. A ordem ali era prestar atenção naquelas sequências de acordes, tão conhecidas, e naquelas letras, extremamente significativas.

Talvez como eu, muitos ali pensaram em que circunstâncias já tinham ouvido essas músicas. Em que ocasiões já haviam as mostrado para amigos, parentes, namorados. É o cerne da beleza invisível da música, mas que é facilmente compartilhada. E aí não é mais questão de ser fã ou não, é de compreender e levar em conta toda a sua história enquanto ouvinte passional e crítico. É, em suma, o que José Miguel Wisnik chama de “não tempo” no livro O Som e o Sentido.

“As melodias participam de um tempo circular, recorrente, que encaminha para a experiência de um não tempo. Essa experiência de produção comunal do tempo faz a música parecer monótona, se estamos fora dela, ou intensamente sedutora e envolvente, se entramos em sintonia.”

Sintonia.

“Sometimes” veio no segundo bis, e só não fez chover. “Foi nossa primeira vez no Brasil e esse show foi muito importante. Obrigado”, disse Tim Booth, nitidamente emocionado. Foi importante para nós também, Tim. Para nós também.

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