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Laerte. Entrevistão: “A saída para a crise masculina não é se travestir, é se questionar.”
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Ele, ela. Tanto faz. Laerte Coutinho, um mestre dos quadrinhos no Brasil, desafia os padrões de gênero que, diz ele, são estabelecidos por fatores sociais e culturais. No último domingo, saiu uma matéria na Gazeta do Povo, que relatava um pouco do trabalho da ABRAT – Associação Brasileira de Transgêneros, ONG da qual ele/ela é confundador. Algumas pessoas me pediram, e aí está a íntegra da longa entrevista que fiz com o senhor de 61 anos, que virou senhora aos 58.

Laerte fala sobre sua sexualidade que desafia Freud (“só tive namorada depois de começar minha vida sexual com homens”), a imprensa brasileira (“revistas como a Veja não estão interessadas em informar nada”) e a crise da masculinidade (“homens se recusam a se ver, a se problematizar, e a se encarar como objeto de uma questão.”) Lá vai:

Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Chamo de senhor ou senhora?
Pff, tanto faz. O que quiseres.

Faz tempo que não vem a Curitiba?
Até que não. Vim ano passado para um encontro GLBT.

E a cidade, que te parece?
Nossa, gosto muito de Curitiba. Sempre achei muito simpática. Já vim lançar livro na Itiban. A passeio, vim há uns 10 anos. Mas sempre achei muito legal a cidade. Um astral bom.

Você veio para um seminário da Abrat – Associação Brasileira de Transgêneros…
Sim, é uma ONG que a gente fundou, em nome de promover essa conversa e esse debate em torno do tema da transgeneridade, que achamos um tema fundamental, não só nas nossas vidas, mas como dentro do contexto do movimento LGBT, e como parte da luta da população brasileira pelos direitos civis. Fundamos a ONG para isso. Nem tem CNPJ ainda, fundamos no fim do ano passado. Os trâmites de burocracia tomaram todo o nosso tempo até agora.

Qual a principal discussão em torno desse tema hoje?
Normalmente nos encontros, as pautas dos debates se desenvolvem em torno de direito, saúde e violência. O que tem a ver com o respeito à existência da pessoa transgênera. O que vamos desenvolver aqui é discutir a situação da pessoa transgênera: quantos somos, em que situação vivemos, como se dá o autorreconhecimento ou a armarização…

Armarização?
É, é uma questão dramática pra muita gente que considera sua condição como uma coisa parecida com um crime, doença, pecado. E aí escondem essa condição.

Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Nesse sentido, seria pior do que a situação para um homossexual, o “permanecer no armário”.
É semelhante, mas a transgressão do padrão heteronormativo pode se dar inclusive na situação clandestina. Ela não aparece visualmente. Mas a transgressão de gênero, ela necessariamente é visível e atinge uma área tabu da cultura brasileira e contemporânea que responde muito rápido por meio de agressões, do ridículo, por meio de várias discriminações extensivas. Então, ela faz parte do movimento LGBT, mas ao mesmo tempo é uma área específica.

O que o brasileiro ainda precisa aprender sobre os transgêneros?
Primeiro o que é transgênero (risos). Não, é que o conceito tem gerado uma certa confusão. A palavra transgênero é uma palavra guarda-chuva, que abriga muitas populações, muitas formas de expressões da transgeneridade, que são a transexualidade – a pessoa que está em desacordo com seu sexo biológico, e que no limite, busca a correção física através da cirurgia – corssdresser, drags, transformistas…

Crossdresser é exatamente o que?
É travesti. Quer dizer travesti. Por vários motivos, as pessoas que se dizem crossdresser continuam se dizendo travestis. Quando comecei a me travestir, me via como crossdresser e até frequentava um clube. Isso foi em 2009.

Foi nessa época que começou tudo…
É, comecei a tomar conhecimento da minha condição de transgênero em 2004. Entre esse autoconhecimento e assunção plena e pública, demorou bastante tempo.
Algo foi o estopim para essa mudança?
Não, isso vinha desde sempre de forma camuflada. Não era algo que chegava ao meu consciente. Mas de fato, essas formas transpareciam, vazavam. Eu mostrava isso. Uma dessas formas é o meu trabalho, a minha tira. Foi através do Hugo, um dos meus personagens, que uma amiga, Maria Paula, detectou isso e entro em contato comigo. “Será que você não é também uma pessoa que gosta de travestir?” Comecei a pensar nisso e fui me aproximando de grupos de pessoas que fazem isso, praticam.


Como foi a primeira vez em que se vestiu de mulher?
A gente começa sempre com uma série de pequenas ações normalmente visíveis só pra gente mesmo. Por exemplo, usar uma calcinha. É uma coisa que só você tá vendo. E aí, não sei. Pintar a unha, por exemplo. Foi uma coisa que fiz e não quis desfazer. Quis ficar com ela. E aí começa a exteriorizar isso, aos poucos. Furar a orelha, usar brincos. E aí chegou uma hora em que dei uma entrevista, apareceu esse assunto e falei “ah, pode pôr, eu faço isso mesmo.” E o fato de eu ter dito isso me deixou tão melhor. Me aceitei de vez e falei beleza, é isso que eu quero. É essa a forma que quero me ver e ser vista.

Você era infeliz quando “era homem”?
Eu nem sou feliz agora (risos). Não acredito nessa ideia de felicidade. Estou muito satisfeita com minha condição atual. É assim que eu queria ser. Quando eu me vestia com roupas masculinas, eu nem sequer pensava nisso. Eu vestia de forma absolutamente inconsciente. É o que a cultura dita masculina chama de “modo prático”. “Não, as mulheres são complicadas. Nós homens somos práticos. A gente pega camiseta, uma bermuda e pronto.”

Com quantos anos você está?
61.

Por que demorou tanto pra isso acontecer?
É uma belíssima pergunta. Se estivesse na posição de entrevistador, era a primeira que eu ia fazer. “O que você ficou fazendo durante 60 anos?” É que, na verdade, a transgeneridade é típica de cada pessoa. Como é muito íntima de cada um, ela assume a forma daquela personalidade. É sempre idiossincrática. Quando uma pessoa percebe a sua transgeneridade, isso pode acontecer em momentos muito variados. A maior parte das pessoas que conheci nesse tempo perceberam sua condição, seu desejo pelo feminino, muito jovem, em criança ainda. Eu tento pensar e vejo alguns episódios assim. Mas são coisas meio nebulosas. Sei que gostava de roupas femininas, que gostava de me ver de alguma forma feminina. Mas isso através jogos, representações simbólicas, fantasias. Não era uma coisa clara. Talvez o meu sistema de controle moral fosse mais rígido do que eu supunha.

Você jogava bola, corria na rua, fazia coisas de menino?
Eu frequentei vários tipos de brincadeiras. Ali onde eu fui criança, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, era muito semelhante a uma cidade do interior. A gente teve uma infância muito lúdica, muito rica. Apesar de já existirem esses códigos de gêneros, eu brinquei de casinha, de fazer comidinha, aprender a costurar. E ao mesmo tempo eu também joguei bola. As meninas também jogavam bola. Então, tinha uma certa liberalidade. Quando a gente foi virando pré-adolescente, aí sim a coisa começou a estreitar um pouco.

Você tinha namoradas nessa época?
Não, só tive namorada depois de começar minha vida sexual com homens. A percepção da minha orientação sexual é uma outra história. É independente. E também foi dificílimo. Demorei anos pra chegar e dizer: “tá, eu tenho desejo por homens também.” Dentro da população transgênera tem literalmente de tudo. Héteros, homens, bi, assexuados, pan…

Todo homem tem uma mulher dentro de si?
Eu espero que tenha, senão é muito chato. (risos). Não, não dá pra generalizar. É um tipo de desejo muito pessoal mesmo. O que eu tenho refletido e elaborado é alguma coisa na linha da Teoria Queer. É a própria ideia de que a construção binária de gêneros é algo discutível, ou muito questionável. Nesse sentido, é possível a gente pensar que o masculino e o feminino não existem enquanto coisas naturais. Existem enquanto construções culturais, socialmente construídas. Então, quando você fala que todo homem tem uma mulher dentro de si… é possível que sim porque estamos todos participando de um sistema que produziu esses elementos culturais, não tem porque não ter. O que se atribui como comportamento, como especificidade feminina, é algo que é masculino também. A gente costuma reservar para o campo das mulheres certas características, como ser emotivo, se preocupar com detalhes. É tudo mito. Essas coisas são partilháveis.

Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Você percebe uma feminilização do mundo nesses últimos tempos?
Por que estão chegando ao poder? Não sei. As mulheres estão chegando ao poder sim, isso é um fato. Mas isso pertence à movimentação política, da luta das mulheres pelos seus direitos, e que tem uma história. Uma forma de se mover. Que hoje a gente eleja uma mulher presidente é um sinal, mas ao mesmo tempo é um fato político em si. Isso não precisa ser interpretado à luz das conquistas feministas. São Paulo elegeu um prefeito negro há uns anos atrás, e isso pra mim não significa um grande diferencial no tratamento com a população negra.

Como foi a aceitação depois da sua mudança? O fato de você ser um artista idolatrado ajudou?
Idolatrado não…

Verdade. Inclusive tenho que pegar alguns autógrafos depois. Você é um grande artista, isso é inegável.
Não, eu tenho amigos, é diferente (muitos risos). Mas a aceitação na família foi bem legal. Tenho uma circulação de ideias e afeto bastante livre com meus pais, filhos e namorada. Teve momentos mais ardidos, de alguma tensão, mas todos eles caminhavam muito bem. Não houve perda de afeto nem distanciamento.

Para os seus filhos, foi um choque?
Eu vinha falando com eles… da minha bissexualidade eles já sabiam. Quando a gente assume bem pra si mesmo, é tudo mais tranquilo. Quando você sabe o que você é, é mais fácil dizer e falar por aí. Agora, na minha profissão, isso tem construído uma espécie de reação específica, típica. Existiu um momento, por exemplo, que minha atitude foi encarada como uma espécie de ação profissional. “Ah, ele tá construindo um personagem.”

Muita gente ainda hoje acha que é uma piada
Resposta para isso não tem. Quem pensa assim, vai ver que passam-se os anos, as décadas… a ideia é continuar assim. Mesmo porque não quero ficar presa. Estou assim não em busca de outra prisão, mas sim em busca de livre expressão. Estou me apresentando dessa maneira em busca de liberdade, não de novos modelos.

Você se tornou mais popular depois que começou a se vestir de mulher?
Acho que sim porque o tema é tabu. Entrei nessa área. Acrescentei um dado na minha biografia. Um dado que interessa as pessoas. Pra minha surpresa, interessa mais do que eu pensava. Tenho achado legal. Porque isso é também motivo de reflexão e pesquisa. Eu também tenho perguntas. Não tenho só respostas…

Que perguntas você se faz?
Qual é a natureza desse desejo? Por que ele é tão forte, irrefutável, inevitável? Por que é tão difícil dizer que é só um capricho? Por que é tão difícil você assumir e dizer que é apenas um hobby de fim de semana? Por que existe essa vontade crescente e até onde vai isso? Questões como modificação corporal, por exemplo, eu me coloco. Eu quero ou não quero ter seios? Saiu por aí que eu queria fazer crowdfunding para colocar peitos… (risos), mas isso foi uma piada.

Mas aí faria um ou dois?
Hahaha, dois, claro. Mas isso foi brincadeira. Se eu fizer, quero que seja algo certinho.

Algo incomoda? Fazer depilação, por exemplo?
Acho tudo delicioso. São práticas da minha liberdade. Depilação, unha, laser na cara. São preocupações que não me preocupam.

O que é mais complicado em ser mulher?
Olha, quanto mais eu sou mulher, cada vez mais acho que o mais difícil é ser homem. Homens é que são complicados, é que se recusam a se ver, a se problematizar, e a se encarar como objeto de uma questão. Homens se recusam a isso, e isso os leva a assumir um papel dificílimo, o papel de estar pronto para ser massacrado, de jamais se questionar determinados ditames que vêm sabe-se Deus de onde: eu sou herói, posso resolver tudo, deixa comigo. Sabe, esse tipo de coisa que às vezes se expressa em coisas simplistas, como homem não chora e sei lá o que? São muito mais amplas e dramáticas para a população masculina. Homens morrem centenas de vezes mais que as mulheres em situação de violência. Homens são mortos em guerra. Homens são submetidos a coisas inimagináveis. Isso é difícil. O pior é que eles não se veem como viajantes nesse navio. Eles não se questionam. É típico da crise masculina que a gente vive hoje a falta de questionamento. As mulheres só conquistaram tudo que elas conquistaram porque em um momento elas tiveram que enxergar sua condição. Desde a luta pelos direitos básicos, não serem tratadas como animais, direito a voto, até a compreensão delas dentro do gênero humano. Elas cresceram muito. E só foi possível isso porque as mulheres, enquanto uma categoria, puderam se ver, se questionar e se entender. Os homens, enquanto se recusarem a fazer isso, vão estar mergulhados nessa crise infindável. A saída pra essa crise certamente não é se travestir, não é buscar comportamentos femininos e buscar alguma delicadeza no seu comportamento. É se entender, se ver e se questionar. Basta isso.

Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Teve a polêmica do banheiro, no início do ano [Laerte foi impedido de usar o banheiro feminino de uma pizzaria, em São Paulo]. Em qual banheiro você vai?
Em qualquer um. Não levo a sério a divisão por gênero. Sou obrigado a levar a sério em determinados contextos, lugares, porque também não sou louco. Não vou desafiar… não sou suicida. Tem alguns lugares em que quero só usar o banheiro. E prefiro fazer isso da forma mais relaxada possível.

Você faz sentado?
Ou de pé. Tanto faz. Sou ambidestro, tenho dupla cidadania. Não levo a sério essas coisas porque é um costume. Esse costume está plantado dentro da nossa tradição de dividir o mundo em masculino e feminino. Como estou questionando justamente essa divisão, a dividir banheiros não faz sentido. Faz sentido é a proposta que tá se levando a cabo na Argentina, a inexistência de banheiros por gênero.

Unissex?
É. Mas não um terceiro banheiro. Um banheiro sem gênero, um banheiro humano.

Você acredita em Deus?
Não… acho que sou ateu. Sei lá. Ser ateu tem uma carga, não é? “Ah, então prove que Deus não existe”. Fui religioso até o início da adolescência, depois essas coisas deixaram de fazer sentido. Passou a ser uma área de interesse pra mim, mas um interesse histórico. Tenho Bíblia em casa, adoro ler aquilo, mas com outros olhos.

Como a mídia brasileira trata a transgeneridade?
De duas maneiras. Acho que existe uma parte da mídia que responde a natural curiosidade geral sobre esse tema e procura trazer informações e aprofundar o debate. Tem uma outra parte da imprensa que está interessada em cultivar só uma relação específica com seus leitores, uma imprensa de nicho. O que esse tipo de imprensa faz não é informar. Ela traz um tipo de informação traduzida para um público que acredita ser o público leitor, o perfil. Então, revistas como a Veja, por exemplo, não estão interessadas em informar nada. Estão interessadas em traduzir o mundo para esse público. Como o perfil desse público também se adéqua a isso, cria-se uma espécie de ciclo vicioso que pra mim não me interessa. Procuro evitar atender a essa imprensa.

Você lê bastante?
Sim, leio. Tenho muita dificuldade de concentração para textos acadêmicos, mas me interesso pelo trabalho da Judith Butler, essas teóricas contemporâneas que estão construindo a Teoria Queer. É uma pegada interessante porque elas propõem uma abordagem diferente para o próprio feminismo. Ela, a Beatriz Preciado, são filósofas que propõem um modo de ver que questiona as proposições do feminismo. Por que é muito variado. O feminismo é uma coisa necessariamente difusa e sua força reside nisso. É de alta difusão e muita penetrabilidade. É o caminho que eu gostaria que a transgeneridade também trilhasse.

Depois da sua mudança, já sofreu preconceito alguma vez?
Não. Posso dizer que me tratam muito bem. Muito bem mesmo. Fora o episódio do banheiro, nunca tive portas fechadas, nem encostadas. E já fui a todos os lugares… O principal é o modo como a gente se vê. Tá tudo lá dentro.

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