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O que Beach Fossils nos ensinou numa terça-feira chuvosa

Fotos: Rubia Oliveira (Foto: )

Foi um encontrão ocasional. Dustin Payseur, vocalista e guitarrista do Beach Fossils, caminhava a passos decididos no corredorzinho formado entre a pista e o balcão do bar do 92 Graus, em Curitiba. Seu manager Luiz, ajeitando os grandes óculos quadrados, avisava “está tudo ok, vamos lá!”, em tom de preocupação e ansiedade. A passagem de som durara mais de uma hora para que todas as distorções, como ouviríamos, estivessem no lugar.

Fotos: Rubia Oliveira

Fotos: Rubia Oliveira

Às 23h30 da terça-feira passada, Dustin subverteu a ordem natural das coisas musicais e começou o show como se tudo que estivesse por acontecer já tivesse acontecido. Porque logo em “Clash the Truth”, a primeira música, o piá já estava no chão, cercado de maluquinhos que não sabiam se tocavam no sujeito, tiravam uma foto, ou se só dançavam desengonçadamente ao som daquele noise pop tão convidativo. Irônico, o Beach Fossils transgrediu primeiramente a ordem dos acontecimentos – proporcionou a catarse antes da apreciação. E, depois, partiu para um show impressionantemente barulhento e perfeccionista, dando uma lição de profissionalismo para bandas em início de carreira e de atitude para sonhadores que ainda mantém um pé no chão.

Ainda no encontro improvisado no corredor, Luiz, o manager com cara de mexicano, me disse que o grupo estava em uma longa turnê mundial. Falou rapidamente que o show em São Paulo havia sido muito bom, e que estiveram há pouco no outro lado do mundo, para tocar na Nova Zelândia. Na verdade, o Beach Fossils gastou todas as milhas que tinha em setembro ao se apresentar em Nova York (1°/9), Londres (5/9), Paris (8/9), Modena (10/9), Roma (11/9), Viena (14/9), Atenas (15/9), Tel Aviv (16/9), Melbourne (21/9), São Paulo (28/3) e finalmente Curitiba (1°/10) para completar a turnê no Rio de Janeiro (3/10).

Além de ser símbolo de resistência da música autoral curitibana, o 92 Graus tem dessas: proporcionar shows completamente aleatórios e fantásticos. Porque o fato de a Beach Fossils, endossada pelo Times, com dois bons discos, em meio a uma importante turnê global, pisar naquele palco numa terça-feira chuvosa, só não é páreo na equação qualidade x chance para o show que o Fugazi fez em 1994, ainda na antiga sede do bunker underground.

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E, não sei exatamente, mas a soma das idades de Dustin Payseur, Tommy Gardner (bateria), Jack Doyle Smith (guitarra) e Tommy Davidson (baixo) deve dar algo em torno do que tem Paul McCartney ou Tom Zé. São garotos já profissionais ao caminho de sua plenitude artística, o que deixa o show que fizeram – e a carreira que terão – ainda mais interessantes.

Dustin Payseur é um sarcástico racional que usa a ironia como atalho, não como uma muleta cotidiana, convenção atual. Ele abriu o show improvisando frases a princípio aleatórias, como “isso é real?”, “queria que eu estivesse morto”, enquanto a banda o impulsionava ao se transformar num power trio barulhento. Foi nesse contexto, uma espécie de missa soturna, que Dustin desceu do palco para se misturar. Era como se naquele exato momento estivesse sendo criada uma realidade paralela, também conhecida como “sequência do show do Beach Fossils em Curitiba no 92 Graus (no 92 Graus?!) naquela terça-feira chuvosa.”

A banda tem dois discos, Beach Fossils (2010) e Clash the Truth (2013), além de singles e EPs. O show durou uma hora e vinte minutos e abraçou músicas dos dois álbuns. Logo após o início “ao contrário”, ficou escancarada a seriedade com que esses caras tratam sua escolha profissional. O fato de a passagem de som ter durado 90 minutos – sabemos que no 92 Graus ajustar o som é um desafio, mas não é para tanto… – contribuiu para que todas as músicas soassem melhor ao vivo do que em estúdio, o que não deixa de ser impressionante.

A penetrante “Taking Off”, por exemplo, trouxe as guitarras cristalinas que são ouvidas no álbum, mas também a sujeira ideal, a força mensurada de uma juventude inquieta, e uma performance que ao mesmo tempo abrange e coloca em seus devidos lugares o shoegaze, o noise, algo de grunge e o simples barulho adolescente. “I’m taking off again/ it feels like is a sin/ am I excited or am I just so confused?” Há Wild Nothing e Nirvana em Beach Fossils. E também Beast Coast e My Blood Valentine. São pós-pós-punkers. E igualmente um bando de garotos cuja autenticidade é como um soco na cara de quem vive em banho-maria.

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O show continuou intenso e quente. Os pulos faziam com que o chão do 92 balançasse assustadoramente – imaginei por um momento o que aconteceria se a casa viesse abaixo, e ao mesmo tempo que isso seria completamente injusto com o bravo e agora barbudíssimo JR, o dono do pedaço. Um punctum possível no meio daquele gostoso caos era o guitarrista Jack Doyle Smith, que parecia ter acabado de fazer um show com o Massacration e depois dado uma passadinha em algum filme engraçado da Sessão da Tarde. Outro era o “Paris” (cheguei a pensar que era “Pixies”) estampado na camiseta do baixista Tommy, ainda um garoto como outro qualquer que, ao viajar para outro país, traz camisetas como souvernirs.

A certa altura, Dustin perguntou ao público quem estava na faculdade. Um rapaz, talvez mais velho que ele, à beira do palco, ergueu a mão. “Faço Direito.” Dustin – sua raiva pontual e uma assertividade palpável provam que isso não foi planejado – berrou. “Eu também estava na porra da faculdade! Até largar tudo para fazer o que amo. Agora estou aqui. E você aí.” E assim mais uma música deu continuidade aquele delírio coletivo cujo combustível era imaginar fazer o que se gosta e, finalmente, ser feliz com isso.

A Beach Fossils foi formada em Nova York em 2009. O primeiro single foi lançado em 2010 pela Captured Tracks, misto de selo, agência e “empurrãozinho”, do qual também fazem parte bandas como Craft Spells, Blank Dogs e a boa e velha Wild Nothing. Se viajam o mundo e proferem discursos pseudo-revolucionários, não é à toa.

Quando a chuva já havia parado, ficou claro que a receita para que o sucesso de alguma banda cuja sonoridade não seja apelativamente comercial se dê realmente continua a passar por uma vontade incorrigível de fazer o que se quer (largar a faculdade pela música), talento nato (você que viu o show sabe disso), o cultivo do próprio público (pequeno, mas entregue) e da existência de uma casa de shows historicamente valente e alternativa, apesar das tábuas soltas.

Precisávamos de um show de meninos de 20 e poucos anos para ver que algumas coisas não mudam, não importa em que longitude e latitude, tampouco o dia da semana. Beach Fossils está no Top 5 dos shows em Curitiba neste ano até que se prove o contrário.

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