O jornalista é antes de tudo um curioso. Pelo menos éramos assim há algum tempo. Surgia um assunto e lá estávamos nós ouvindo pessoas, lendo, nos aprofundando e repassando as informações ao leitor, espectador ou ouvinte. Não que a curiosidade seja uma característica exclusiva do jornalista. Só transformamos esse desejo algo infantil de descobrir o que há por baixo das pedras em profissão.
E é assim, com o espírito o mais curioso possível, que ouço os gritos desesperados de algumas pessoas dizendo que o presidente Jair Bolsonaro é um genocida por causa da marca de 100 mil mortos por Covid-19 no Brasil. Houve até quem dissesse que precisaremos de um novo Tribunal de Nuremberg para condenar os responsáveis por tamanha mortandade. Taí uma narrativa que desperta a minha curiosidade. Quero entender como raciocinam aqueles que dizem que aquele homem conseguiu, em cinco meses, matar 100 mil pessoas.
Para tanto, ligo para três amigos que ultimamente andam cheios de indiretinhas para mim nas redes sociais. (Em tempo: este texto não é indireta para ninguém porque os amigos são totalmente fictícios). Para eles, sou invariavelmente um bolsonarista e um negacionista. Às vezes eles sobem o tom e sou xingado de idiota, burro ou mau-caráter. Mas já ouvi também que sou misógino, homofóbico e racista. Recentemente, ao que parece, me tornei “cúmplice desse necrogoverno” – o que quer que signifique isso.
Para mim, é um mistério como pessoas que xingam as outras assim ainda podem ser consideradas amigas. Mas essa é uma dúvida para a qual minha curiosidade terá de buscar respostas outro dia.
“Você morreu por dentro”
O primeiro amigo para quem ligo é um intelectual de alta estirpe, daqueles que tem Harvard no currículo – Harvard é o nome do curso de inglês que ele frequentou em Piraporinha do Oeste, mas isso não vem ao caso. É um homem que se orgulha de ter lido todos os livros do Bukowski e que todas as semanas publica vídeos emocionados ao som de Caetano, a quem chama de Caê. Meu amigo consulta o site da Academia Brasileira de Letras diariamente para ver se “tem alguma novidade no nosso idioma pátrio”.
Peço que ele me explique por que o Presidente da República, e não os prefeitos, governadores, o Congresso, os ministros do STF, Xi Jinping, o diretor-geral da OMS ou o Zé da Couves, deve ser responsabilizado pelo “genocídio de 100 mil inocentes”. O que Jair Bolsonaro, CPF tal, RG tal, poderia ter feito para que não morresse tanta gente em decorrência do vírus que veio lá da China e, por onde passou antes de aportar aqui, matou a rodo? E mais uma perguntinha: qual número de mortos seria aceitável neste caso?
“Se você está me perguntando isso é porque já morreu por dentro”, responde ele. Fico quieto. Ouço meu coração. Respiro fundo. Não, acho que não morri nem por dentro nem por fora. Insisto na pergunta e, abjetamente recorrendo à autocitação, peço que ele me diga o que teria feito diferente. E que garantia ele tem de que suas medidas, não as medidas que foram ou não tomadas pelo “presidente genocida”, governadores e prefeitos, seriam as melhores e mais eficientes.
Ele hesita em responder e me sinto na obrigação de oferecer a ele alternativas. Hidroxicloroquina? Lockdown completo ou relativo? Isolamento transversal? Chá de boldo? “Por falar em chá, já ouviu falar do Da Hong Pao? É um chá adubado com excrementos de panda”, diz ele. Ficamos conversando sobre chás durante meia hora. Penso em retomar o assunto sobre o genocídio, perguntando a ele qual seria o número de mortos aceitável. Mas me distraio e meu dedo sem querer desliza sobre o botão que encerra a chamada.
“O bolsonarismo é a verdadeira pandemia assassina”
Hora de falar com o segundo amigo. O mais, digamos, enfático deles. Escritor de renome, ele passa os dias expressando seu desespero nas redes sociais. Para ele, vivemos um caminho sem volta rumo ao mais tenebroso abismo. O Brasil de hoje é o pior Brasil de todos os tempos. Por causa do governo, até o sol se esconde em dia de chuva. O brasileiro que elegeu “o Coiso” é, para ele, pior do que lixo. A escória da Humanidade. E todas as hipérboles do tipo.
A ele faço uma pergunta capciosa. Por causa dela, acho que perdi o amigo, mas paciência. “Me diz aí, cara, o que a Dilma, o Lula e até o FHC teriam feito de diferente? Me diz o que o Haddad ou o Ciro teriam feito de diferente”. Ele responde com um xingamento carinhoso para logo em seguida tergiversar: “Isso não interessa, cara. É uma questão simbólica, saca? A coisa de oferecer hidroxicloroquina para a ema. Isso é uma vergonha internacional! Não entendo como você não está revoltado, indignado,...!”
Queria estar. Queria acordar todos os dias e ter essa certeza absoluta de que o Presidente ou qualquer outro contido no conceito de “governo” é o culpado por todas as mazelas desses mais de 8 milhões de quilômetros quadrados chamado Brasil. Queria ser capaz de apontar o dedo assim meio a esmo e atribuir aos outros a responsabilidade por todos os meus problemas. Queria me deitar na cama e soltar um longo suspiro: porque outra pessoa, qualquer uma, é a explicação para a minha insônia.
Mas não consigo.
“...o Lula era corrupto e a Dilma falava em estocar vento. Mas eram mais respeitosos, mais dignos do cargo. Mais decorosos”, continua ele. “Eles se preocupavam com os pobres e com nós, os artistas. Já o Bolsonaro quer destruir tudo! Vou falar uma frase bem legal agora para você usar como intertítulo: ‘o bolsonarismo é a verdadeira pandemia assassina’. Anotou? E não se esqueça de pôr link para minha nova obra-prima”.
A conversa não prossegue muito bem. Ele começa a reclamar, dizendo que “esse governo anti-intelectual, antieducação e anticultura agora quer cobrar imposto de livro”. Aí eu me lembro de minhas conversas antigas com ele, diálogos de um tempo em que brindávamos à nossa deliciosa vida, de quando nosso maior lamento era a crítica ácida à coletânea mais recente do Rubem Fonseca. Diante das minhas respostas monossilábicas, com um quê de tédio, ele perde as estribeiras. “Não dá, cara. Não dá pra continuar amigo de um negacionista como você”.
E desliga na minha cara.
Artigo 196 da CF88
Por fim, ligo para meu terceiro amigo. Um advogado de prestígio e cujo iate (que ele chama modestamente de “lancha”) foi batizado de “Habeas corpus”. Atualmente isolado em sua casa em Búzios, ele reclama da penúria causada pela pandemia, inépcia, negligência, tosquice, ignorância e anticientificismo do presidente ultraconservador. “Os víveres estão acabando!”, grita ele, enquanto prepara mais um G&T de frutas vermelhas.
Refaço as mesmas perguntas, que ele ouve com atenção fingida. Ao fundo, ouço o barulho dos cubos de gelo no copo. Ele respira fundo e finalmente responde: “Artigo 196 da Constituição Federal de 1988”. Sem me dar conta de que a câmera está ligada, reviro os olhos. Ele me repreende. “Não me surpreendo que você não saiba a nossa valorosa Constituição de cor. Jornalista não sabe nem usar mesóclise mesmo. Mas, como sou seu amigo, vou iluminar sua vida neste momento. O Artigo 196 da Constituição Cidadã garante que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Ao se negar a prover saúde para todos, o Presidente se tornar um criminoso corresponsável ou, como preferem alguns mais exaltados, um genocida”.
A melhor resposta que recebi aos meus questionamentos também é a mais absurda. “A saúde é um direito de todos” pode até ser um bom slogan e uma frase que combina bem com a Constituição de 1988, mas em termos práticos é, no máximo, um pensamento mágico. Dou um desconto para a redação bem-intencionada, mas impraticável, do constituinte, e suponho que ele falasse de garantir o acesso de todos a hospitais, médicos, remédios. Proponho a ponderação ao amigo.
“Ainda assim, cabe ao Presidente da República zelar pelo que consta no texto constitucional. Por isso é como se o Mandatário Geral da Nação tivesse ido até a China, misturado carne de morcego e tripas de salamandra num caldeirão, voltado ao Brasil e inoculado o vírus em cada uma das vítimas, fatais ou não”, explica ele com toda a boa educação que lhe é característica.
Antes de desligar, combinamos um chope para quando tudo isso tiver ficado para trás.
Continuo sem entender
Depois de três ligações, contabilizo a perda de ao menos um amigo. E continuo sem entender por que o Presidente pode, ou melhor, deve ser responsabilizado diretamente pela morte de 1, 5, 10, 1.321 ou 100 mil pessoas – o que o tornaria um genocida a figurar no Panteão Macabro. Além de negacionista, pois, para meus detratores também sofro de hipossuficiência intelectual aguda.
Mas persisto e, de hoje até o dia em que a primeira vacina de Covid-19 for anunciada (com pompas e fogos de artifício, espero), buscarei saciar essa minha curiosidade. Quem sabe até lá ouço uma resposta capaz de me convencer de que Bolsonaro é mesmo o Anticristo. Quem sabe alguém apresentará uma forma de impedir que um país de 200 milhões de habitantes assista a 0,05% de sua população de saúde mais frágil perecer diante de um vírus novinho em folha. Quem sabe alguém disponha dos gráficos e do discurso certo para me ensinar que, em se tratando de mortos numa pandemia, há um patamar desejável de, digamos, 0,03% - patamar esse que isentaria de culpa o presidente ou qualquer autoridade por algum motivo detestável.
Porque acima de tudo eu sou mesmo é esperançoso.
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