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Foi ali na rua Santa Catarina que descobri o amor. Há muito mais tempo do que ouso confessar. Tanto que os detalhes já começam a se esvair – e os detalhes do primeiro amor a gente pensa que são eternos. Tanto que o que era uma mansão com minha história lá dentro foi derrubada e deve virar um desses prédios cafonas em breve. Tanto que, de certa forma, eu também virei ruína.
Se tenho saudade daquele tempo marcado pelo desespero, pela intensidade, pela sensação de que tudo é para sempre, sobretudo as casas? De jeito nenhum. Juventude é bom para quem é jovem e não sabe o ridículo que está passando. A nós, os homens de meia-idade que usamos all-star, resta-nos a esperança de uma velhice na qual as lembranças não doam tanto ao caírem sobre nossas cabeças.
Guardo da casa mais lembrança do que da mulher. Principalmente das histórias que habitavam aquele universo todo. Havia, por exemplo, um fantasma que curiosamente só assombrava a sala de estar. Um dia eu juro que não só o ouvi como também ouvi sua risada diabólica. E se eu fechava os olhos para beijar o primeiro amor é porque também havia um tiquinho desse medo de assombração.
Havia ainda uma dessas mesas de madeira maciça, herança do tempo em que a família da namoradinha tinha um quê de aristocracia. O dinheiro e os bons modos foram consumidos por sucessivas aventuras do patriarca, bem como por malfadados planos econômicos. Restou, porém, a mesa e a porcelana e a prataria. E o hábito de comer em meio a conversas sobre esse tempo de fartura, bonança e respeitabilidade que ninguém ali teve o privilégio de viver. Triste quando a esperança se baseia numa nostalgia, não?
A árvore
Saindo da casa, descia-se uma rampinha e chegava-se a uma árvore. Não sei que espécie porque nunca fui dado a esse tipo de coisa. Mas foi ali, sob os galhos e os morcegos que os habitavam, que aos poucos o primeiro amor se fazia primeira decepção. Que os cachos da menina perdiam o encanto. Que jorravam daqueles olhos angelicais o que hoje reconheço ser pura maldade.
– Esta árvore fica no meio de tudo, no meio do terreno, no meio da quadra, no meio do mundo, no meio do Universo – dizia ela, ao que eu escutava com o fascínio típico daqueles que têm a razão debilitada pelos hormônios. Ela se dizia bruxa. Tinha até um nome ridículo, cuidadosamente evocado para eriçar meus pelos da nuca: Iáskara. E a árvore era seu templo pagão, no qual me foi dado permissão para entrar.
E eu entrava como se aquilo fosse um privilégio. Como se dentro da caixa de Pandora não houvesse também toda a angústia do mundo. Iáskara me falava de um passado em que tinha sido escrava. Outra vida. E, embasbacado, eu só conseguia pensar no privilégio que era estar diante de alguém que sabia de onde tinha vindo e para onde estava indo. E que tinha decidido me incluir aí no meio desta jornada.
De repente alguém gritava lá da casa. Os morcegos contornavam a árvore contra a luz da lua, num balé confuso, mas admirável. Levantávamos, ela prestava homenagem à Velha Senhora, entrávamos por um corredorzinho, passávamos pelo elevador sempre desligado porque a velha aristocracia não tinha dinheiro para pagar a conta de luz, e ganhávamos de novo a estranha respeitabilidade de dois jovens apaixonados (eu mais do que ela) sob a pudica luz da cozinha.
Nada disso existe mais. A casa foi demolida. O fantasma da sala de estar perdeu seu teto. A árvore que ficava no meio do Universo acabou cortada, transformada numa mesa de MDF que hoje decora a cozinha de uma família sem aspirações aristocráticas. Os morcegos migraram para outras árvores.
Casa-que-não-é-casa
De Iáskara não tenho muitas notícias. Consta que continua se acreditando bruxa e escrava na outra encarnação. Depois de arrancar meu coração do peito e de jogá-lo no fosso do elevador inútil, dizem que ela continuou enfeitiçando homens – até se cansar. Para mim, hoje ela é apena uma lembrança incômoda, um sinal de tudo o que um menino é capaz de fazer quando acredita estar diante do amor da sua vida.
A ruína do primeiro amor lateja em minhas memórias há alguns dias, desde que passei pela casa-que-não-é-casa, pela ausência escondida atrás de um tapume no qual estão estampadas promessas de paz doméstica eterna. Mas não é a primeira. Também a casa da minha infância virou ruína. Ou pelo menos estava ruína da última vez que passei lá pela nem tão saudosa assim rua Rio Mucuri. O capim alto tomava conta o jardim onde uma criança solitária se achava um gênio do futebol. Faltavam telhas que agora deixavam o tenebroso sótão de tantos monstros imaginários exposto.
Não bastassem os imóveis espalhados pela cidade e que aos poucos dão lugar a novas aberrações arquitetônicas, agora eu também me torno ruína. Os exames de sangue já não saem tão bons assim. As consultas médicas parecem mais demoradas. Às vezes levo horas até me lembrar da palavra que quero e, quando alguém me cumprimenta na rua, preciso de um segundo a mais do que o normal para reconhecer a pessoa.
Um dia, bem sei, terei os tijolos da minha existência reduzidos a pó. E os morcegos que habitam minha cabeça terão de procurar outro lugar onde encenar seu balé. Serei, então, apenas lembranças entremeadas por ficção na crônica manca daqueles que um dia me amaram. Amor de verdade – ao contrário daquilo que eu sentia por Iáskara.
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