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Como um funcionário público enfadado no fim do expediente, o ministro Alexandre de Moraes, de forma monocrática e nada transparente, determinou o bloqueio do aplicativo de troca de mensagens Telegram em todo o território nacional. Não bastasse ser uma decisão arbitrária, fruto de uma mentalidade autoritária, ela é ainda uma decisão tão nebulosa que ministro mandou investigar até a pessoa que vazou detalhes do despacho. Graças a esse herói anônimo, ficamos sabendo que a Suprema Corte brasileira toma decisões com base em reportagens do “Fantástico” e que considera todos os usuários do Telegram criminosos em potencial.
Absurdo! Revoltante! Até o presidente Jair Bolsonaro, que está de mãos atadas e com certeza vai admitir a medida até que ela seja naturalmente revogada (sou otimista), se saiu com um lamento-coringa: “inadmissível!”. E, nessas horas em que o cidadão se sente impotente, porque de fato é impotente, não há muito o que fazer mesmo além de gritar sua revolta para as nuvens – aproveitando, claro, que Alexandre de Moraes ainda (ainda!) não proibiu esse tipo de manifestação.
Diante das seguidas afrontas de Alexandre de Moraes e de seus coleguinhas de Corte à Constituição, fiquei me perguntando como foi possível que tivéssemos, em termos práticos, um tirano de toga com legitimidade para fazer o que bem entender, quando bem entender, sem sofrer qualquer tipo de consequência por seus atos. Como a sociedade brasileira, traumatizada pelo Regime Militar e temerosa de ver um ditador novamente no Planalto, pôde construir um sistema capaz de depositar tanto poder nas mãos de um único homem?
Acho que já escrevi em algum dos meus muitos textos falando sobre o STF: os homens e mulheres que ocupam aquelas confortáveis poltronas e se deliciam com aquelas deliciosas lagostas têm apenas suas consciências como limitadoras de seus atos jurídicos. Não há, pois, nenhum tipo de oposição institucional eficaz aos ministros do STF, uma vez que o Senado é omisso e o único pedido de impeachment protocolado pelo presidente Jair Bolsonaro foi considerado “antidemocrático” por aqueles que clamam para si o monopólio da virtude democrática.
Para todos os efeitos, e por mais revolta que isso desperte em mim e em você, as arbitrariedades cometidas por Alexandre de Moraes & Cia. contam com a bênção silenciosa da nossa Constituição. Afinal, a legitimidade de Alexandre de Moraes reside no fato de ele ter sido indicado por Michel Temer e submetido a uma sabatina no Senado, que chegou à fatídica conclusão de que ele tinha notório saber jurídico e, até então, conduta ilibada para ocupar o cargo. Para o constituinte, isso bastava para darmos a uma pessoa o poder de decisão final até mesmo sobre o preço dos combustíveis. O caráter, os eventuais delírios autoritários e a submissão ao ativismo judicial deste e dos demais ministros nunca estiveram em jogo.
Credibilidade e respeitabilidade
O Brasil de 1986, quando a Assembleia Constituinte foi formada, era muito mais inocente. Muito mais simples. Tínhamos, à direita e à esquerda, lideranças que, embora muitas vezes defendessem ideias repugnantes, estavam inegavelmente imbuídas do etéreo “espírito público”. Era um tempo em que a palavra “política” tinha outra conotação. Se havia delírios de controle, e certamente havia, eles eram abafados pelo som de palavras e expressões sedutoras como “democracia”, “liberdade” e “Estado de Direito”.
Era um outro espírito, o que norteava os constituintes. Se, por um lado, havia a noção equivocada de um Estado capaz de prover tudo para os cidadãos, por outro a Constituição foi escrita partindo do pressuposto de que ninguém mais quereria exercer o poder arbitrário no país. Afinal, estávamos saindo de uma ditadura. E coisas como o projeto de poder lulopetista eram motivo de riso e escárnio.
Além disso, naquela época a cúpula do Poder Judiciário gozava de credibilidade e respeitabilidade. Ninguém poderia imaginar que uma pessoa almejasse ocupar um daqueles 11 lugares para fazer prevalecer sua vontade ou a vontade de seu grupo político. Juristas eram vistos com admiração pela sociedade. A inclusão, na Carta Magna, de instrumentos que limitassem o poder dos ministros do STF seria vista como um exagero. Talvez até como paranoia.
À nossa Constituição ultra-abrangente faltou, portanto, antevisão. Faltou prever que um dia um presidente, sabe-se lá por que, poderia indicar como ministro do STF alguém disposto a distorcer o “notório saber jurídico” e corromper a até então ilibada reputação a fim de promover uma agenda revolucionária. Faltou prever que um dia teríamos uma Suprema Corte agindo como partido de oposição – como um puxadinho do PT. Faltou prever que o STF um dia cederia à tentação de usurpar o poder do Executivo e Legislativo.
A consequência disso é que hoje o Brasil se vê impotente diante dos mandos e desmandos de um ou mais ministros que não têm pudor algum em colocar o Regimento Interno do STF acima da Constituição. Que não têm vergonha nenhuma de violar a imunidade parlamentar de opinião para perseguir adversários ideológicos. Que não enrubescem ao se confessarem promotores da Agenda 2030 da ONU. Que indecorosamente trabalham para destruir o pouco que temos de uma cultura verdadeiramente democrática neste país.
De acordo com o que determina essa mesma Constituição, se nada for feito Alexandre de Moraes se aposentará apenas em 2043. Até lá, teremos de conviver com alguém que veste a toga carcomida pelas traças da arrogância revolucionária. Impotentes, assistiremos a vários outros episódios como o de sexta-feira (ou os que antecederam o 7 de Setembro de 2021, lembram?). Diante dos quais só poderemos obedecer, ainda que alguns compreensivelmente insistam em gritar que é “absurdo!” ou “inadmissível”. Nesse ponto, a Constituição de 1988 nos prometeu liberdade, mas nos legou a escravidão.