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É domingo e estou me engasgando com a pipoca enquanto assisto a “South Park: Pós-Covid”. Comento com a minha mulher que andava com saudade desse tipo de humor vulgarmente destemido e anárquico, sem outro objetivo que não o de fazer cócegas na percepção da realidade do espectador. Aí porém contudo entretanto (e todavia) o celular me avisa que tenho uma mensagem nova.
O Hermes virtual me informa que um deputado cearense com mais whey do que filosofia na cabeça está in-dig-na-do com o filme “Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola”, escrito pelo comediante Danilo Gentili. Tudo porque, numa das cenas iniciais, um vilão do filme faz uma alusão pretensamente cômica à pedofilia. Para o deputado, cujo nome faço questão de não mencionar (mas menciono por dever profissional: André Fernandes), é um absurdo que um vilão seja mau, hipócrita e pervertido sexual. Tanto pior se for interpretado por outro desafeto, o ator Fábio Porchat.
Não satisfeito em acusar Gentili de fazer (pausa para um longuíssimo suspiro de tédio condescendente) “apologia do abuso sexual infantil”, o deputado, em sua constrangedora, equivocada e cega cruzada moralista, pediu ajuda da ministra Damares Alves. Ele quer que o Estado, na figura da ministra, dê o golpe de misericórdia em mais um lamentável episódio de linchamento virtual com fins políticos. “A ministra Damares já está cuidando do assunto! Acabei de conversar com ela”, diz o deputado. "Tomara que seja apenas uma bravatinha", penso eu em minha ingenuidade semipatológica.
Tomara, mas parece que não é. Porque, diante da acusação oh-gravíssima o ministro da Justiça (!) Anderson Torres se manifestou pelo Twitter, dizendo que determinou “imediatamente que os vários setores do Ministério da Justiça adotem as providências cabíveis para o caso!!”. As providências cabíveis, senhor ministro, são uma só: ignorar. Não cabe nem ao senhor nem a ninguém usar a estrutura do Estado para perseguir comediantes só porque eles são desafetos que, numa obra de ficção, criaram um vilão pedófilo. Repito: um vilão pedófilo. Vilão! Vilão! Vilão!
Ah, acabei de ver aqui que, como bom oportunista, o secretário da cultura Mário Frias também disse que pretende usar sua canetinha hidrocor mágica para "tomar providências" contra Danilo Gentili e a Netflix. Aguardo também um posicionamento do ministro da Infraestrutura, da Saúde e, se calhar, até do ministro Paulo Guedes. E, enquanto espero sentado, aproveito para perguntar a você que talvez tenha chegado até aqui espumando de raiva de mim: qual a diferença desse tipo de perseguição a uma piada inócua e velha de um desafeto para a perseguição perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal contra conservadores de alta e baixa estirpe?
A arte de não aprender nada
A tentativa atrasada de censurar, repreender e punir um comediante por uma piada acontece uma semana depois de outro arauto da moralidade, o também deputado Arthur do Val, se relevar um hipócrita bombado digno do ostracismo. Defensor inflexível de um estado de coisas ideal e, por isso, crítico tresloucado do petismo e do bolsonarismo, Arthur do Val ignorou a imperfeição que o torna humano e fez carreira política posando de perfeito. Deu no que deu.
O deputado e o ministro que agora se mostram dispostos a ir às últimas consequências por causa de uma piada ruim num filme idem trilham o mesmo caminho. E, se não aprendem nada com os muitos hipócritas de direita e esquerda que caíram da própria altura nos últimos anos, é porque repetem o padrão suicida de atacar pessoas, e não ideias, e sobretudo de não reconhecer que seus adversários, sejam eles comediantes, jornalistas ou políticos, têm direito de expressar suas contrariedades, por mais absurdas que possam parecer.
O contrário disso é o pensamento único regido por uma moralidade severa (e necessariamente hipócrita), capaz de condenar à morte real ou simbólica qualquer um que dela se desviar. Sinto ser eu a informar isso ao deputado, ao ministro da Justiça e aos eventuais apoiadores de mais esse “linchamento puritano”, mas a perseguição a adversários e a ambição de se criar uma sociedade intelectualmente homogênea são estandartes empunhados pela esquerda. Pelo PT. Por Lula. Pelo PSOL. Por Guilherme Boulos. Pela China. Pela Venezuela. Por tudo aquilo a que a direita, seja ela bolsonarista ou não, diz se opor.