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And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And maybe they'd be happy for a while
- "American Pie", Don McLean
Não se deixe enganar pelo veranico lá fora. No fim de semana, o inverno do descontentamento fez nevar aqui na minha alma. Tanto que corri para o computador a fim de verter todo o fel acumulado. Estava na metade de um texto amaro (amaríssimo), porém, quando fui atingido por um raio. Ou talvez tenha sido um anjo que me sussurrou no ombro. Seja o que for, joguei tudo no lixo (de novo). E é nesses momentos que a gente percebe a falta de uma máquina de escrever, papel Chamex e uma lata no canto do escritório na hora de descrever certas cenas.
Com a calva chamuscada pelo raio e o ouvindo ainda ecoando o conselho angelical, me lembrei que escrevo para fazer as pessoas dançaram e, talvez, torná-las felizes por um tempo. E não há como fazer isso recorrendo à análise fria, racional e cruel, baseada no sarcasmo perverso, de qualquer assunto que tenha chamado a atenção das pessoas no fim de semana. E por “chamar a atenção” me refiro à revolta, à indignação e à ira que sempre se considera justa, mas raramente é. Essas parecem ser as únicas coisas que o noticiário desperta hoje em dia.
Inclusive em mim. Não pense que estou imune. Também sou leitor, espectador e ouvinte. Também me sinto ofendido – e com uma frequência cada vez maior. Tanto que o texto jogado fora se chamava “Como é difícil ser leitor” e falava justamente dessa sensação de traição, de antagonismo rasteiro que toma conta de mim quando leio certos vômitos disfarçados de opinião: sem respeito, sem estilo, sem qualquer ambição de elegância e permanência. Ah, que vontade de me vingar! Mas é preciso resistir à tentação do confronto e, no mais, lá no começo deste texto que você tem em mãos usei uma epígrafe a fim de dizer que escrevo para as pessoas dançarem. E, talvez, ficarem felizes por um tempinho.
Vida azeda
Diz lá o título deste texto que “a crise de inteligência é sobretudo uma crise da admiração”. Ao menos desta vez estou certo. É muito mais fácil apontar o dedo e babar ódio, expondo o que é feio e reprovável a fim de despertar no outro o nojo e a repulsa. Nossa, é muito fácil! Ridiculamente fácil. Não à toa vejo tanta gente embriagada desse asco, num estado permanente de reclamação, percorrendo as folhas de jornal em busca de mais uma dose de perfídia para satisfazerem o vício.
Agora tente encontrar pessoas dispostas a dançarem ao som de palavras que exaltem o que há por aí de admirável, louvável, fascinante, esplendoroso, fascinante e divino. Tente, meu Deus, só tente fazer com que elas reconheçam no outro um acertozinho que seja. Tente, numa manhã de segunda ou noite de sexta, fazer o leitor abrir um semissorriso ao contemplar as dádivas de seu tempo e de seus semelhantes. Tente mostrar que a tentativa (sic) sinceramente bem-intencionada, por mais fracassada que tenha sido, é digna de aplausos.
É difícil, acredite. Quem ousa negar o espírito apocalíptico que vinga por aí é visto como um alienado, um puxa-saco, um passapanista, um vendido. E quem quer andar com uma letra escarlate dessas às costas? Mais fácil, pois, é empinar o nariz e tratar o leitor/espectador/ouvinte como um ignorante hidrófobo a ser contido pela força das palavras, dos slogans, dos insultos, das expressões de revolta impotente.
Daí porque tantos abandonaram o desafio, cedendo ao exercício muito mais confortável – e preguiçoso – da crítica cinicamente virulenta. E insistente. E monocórdia. O que eles não percebem é que apontar a inviabilidade do outro é reconhecer a própria inviabilidade – algo que torna o cínico um infeliz incorrigível. E quem quer para si uma vida azeda dessas? Eu, definitivamente, não.