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Há algumas semanas, aquele Youtuber cujo nome omito para não ferir a sensibilidade dos leitores mais suscetíveis andou causando alguma comoção nas redes sociais (a.k.a. simulacro de vida) ao expor suas leituras. Todos os livros de não-ficção política que o inominável Youtuber citava tendiam à esquerda – alguns à extrema e outros à ultraesquerda.
As reações foram tão exageradas e superficiais quanto as leituras do Youtuber – o neto de um Felipe sem sobrenome. Houve quem temesse que as leituras dissolvessem ainda mais o intelecto freneticamente tuiteiro do dito-cujo. Outros ficaram apreensivos com o talento do Youtuber para influenciar cabecinhas por aí. Aqui e ali, abnegados sugeriram ao Youtuber leituras supostamente mais edificantes, como Mises. Bota supostamente nisso.
Por coincidência, nessa mesma época, circa maio de 2021 (parece que foi ontem!), o Facebook me agraciou com uma lembrança de dois anos atrás. Isto é, de quando eu usava a rede social para publicar poemas (desculpe) e expressar uns protopensamentos que não tiveram tempo nem vontade de se transformarem em textos.
A lembrança facebookiana começava dizendo que “a não-ficção só fala para convertidos. O leitor de esquerda jamais se atreverá a ler um Jordan Peterson e um leitor de direita jamais se aventurará por uma Márcia Tiburi”. Pasmo com minha sabedoria e antevisão, parei para consultar os arquivos da memória, a fim de ter certeza de que não estava sendo um tiquinho hipócrita.
Não estava. Não desta vez. Apesar dos reducionismos (“esquerda”, “direita”) e dos nomes imperfeitos contidos na frase, ela confirma minha experiência com a não-ficção política, um tipo de literatura que só comecei a consumir depois de certa idade, e por necessidade profissional, raramente por prazer ou curiosidade. E, como se não bastasse, a frase ainda confirma a tendência à radicalização do Youtuber e de todos os responsáveis por transformarem a não-ficção política no filão do mercado editorial que ela é hoje.
Sejamos sinceros. Ninguém lê “As Veias Abertas da América Latina” com curiosidade desinteressada. Esse tipo de leitura serve apenas para justificar e reforçar uma visão de mundo anterior e para fornecer citações que talvez combinem com as discussões rasas das redes sociais. Da mesma forma, ninguém lê “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota” sem estar um pouquinho predisposto a considerar idiotas o que pensam diferente dele.
A não-ficção política é, em essência, panfletária, escrita não para convencer, e sim para aniquilar o outro por meio da repetição de argumentos anteriormente propostos por um professor de geografia ou talvez por um Youtuber desses bem espertalhões. Esse tipo de livro não ensina, e sim exalta as qualidades intelectuais prévias do leitor, solidificando um conhecimento que não tem nada de novo ou fresco. É, pois, a ração perfeita para o narcisista, em sua insaciável busca por validação.
Ficção, ainda que à tardinha
Não é o caso, porém, de sair por aí apontando o dedo para o Youtuber ou qualquer outro perdido que esteja procurando na não-ficção ideologicamente sectária respostas para seus dilemas políticos. Se há mesmo método na loucura, e há, não se pode dizer o mesmo da estupidez, que é sempre fruto de um acaso que a gente identifica, mas fica com preguiça de resolver e vai empurrando com a barriga.
O Youtuber, bem como quem consome seus rompantes de birra disfarçados de ideias, é fruto de uma geração que nasceu com a imaginação já corrompida pela máquina de propaganda ideológica e que aprendeu que (1) é mais fácil separar o mundo entre o eu-mocinho e o eles-vilões e (2) o homem não tem possibilidade de redenção, então é mais fácil “ver o mundo ironicamente”.
A solução para isso eu mesmo aponto descompromissadamente, ao escrever, na mesma postagem de dois anos atrás, que só a ficção é capaz de transpor esse abismo entre os polos ideológicos. “Prosa e poesia de boa qualidade”, ressalto, para o caso de alguém achar que estava me referindo a “Torto Arado” ou Paulo Leminski.
Se me conheço bem (não conheço) e se a memória não me falha (sempre falha), estava pensando era na caudalosa ficção russa do século XIX e em algumas obras específicas do século XX, como “Grande Sertão: Veredas”. Em livros que, com a sutileza que é cara aos melhores artistas, são capazes de apresentar o menino ao homem, isto é, de fazer com que até mesmo um Youtuber narcisista se olhe no espelho sem se deixar enfeitiçar pela própria imagem autoindulgente.
O problema é que a ficção não dá ao leitor inteligente a autogratificação imediata na qual as redes sociais nos viciaram. O prazer da ficção é quase um prazer masoquista-onanista. É olhar para dentro de si e se ver cheio de falhas e, por isso mesmo, incapaz de condenar a priori quem pensa diferente ou de mudar o mundo “para melhor”. É, pois, um exercício de sacrifício e humildade. Nada mais em descompasso com uma época em que se descobrir humano é um crime punido com o escárnio e o ostracismo.