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Estava aqui olhando de um lado para o outro, mais perdido do que deputado ou senador que acabou de descobrir que seu mandato não serve para nada, quando por vias insondáveis me deparei com um ensaio do historiador Lincoln Mullen sobre os versículos bíblicos mais citados no século XIX e começo do século XX. Os versículos são Lucas 2:14, Lucas 18:16 e Mateus 7:16. No ensaio, Mullen oferece uma explicação rápida para o sucesso desses entre os milhares de versículos bíblicos.
Com direito a gráfico e tudo, Mullen mostra, por exemplo, que Lucas 2:14 era usado sobretudo em tempos de guerra. Já Lucas 18:16 foi muito usado no período por uma razão boa – o crescimento das escolas dominicais – e uma razão tétrica – os numerosos obituários para crianças numa época em que a mortalidade infantil era altíssima.
Daí a me lembrar de João 8:32, o versículo preferido do ainda-em-chefe Jair Bolsonaro e de seus seguidores, foi um pulo. Minto. Foram necessárias algumas tentativas fracassadas de fazer um texto cheio de piadinhas com a venezuelização do Brasil, entremeadas por tentativas igualmente fracassadas de escrever um texto sério, soturno, poético e ilegível sobre, sei lá, Gilmar Mendes. Até que meus neurônios deram uma de França e se renderam. “Escreva sobre aquele versículo lá do Bolso!”, gritaram eles com suas vozinhas de sinapses empolgadas.
Verdade x verdade
A primeira coisa que me chamava a atenção sempre que o ex-presidente em exercício Jair Bolsonaro mencionava João 8:32 ("E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará") era a conjunção aditiva inicial que ele fazia questão de enfatizar. Além da prosódia própria de Bolsonaro, o curioso é que o “e” está ali, no comecinho do versículo, quase como que para impedir o uso político da palavra de Deus.
Porque o “e” se refere à continuação de uma premissa de Jesus: “Se vós permanecerdes firmes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos”. Ou seja, o versículo imediatamente anterior, João 8:31, dá uma dimensão totalmente diferente ao trecho bíblico preferido de Bolsonaro, repetido à exaustão na campanha de 2018, esporadicamente ao longo do governo, e perdido no silêncio penitente a que o presidente se submeteu nas últimas semanas.
É uma confusão de verdades. Politicamente, e porque lhe convinha, Bolsonaro repetiu o versículo para falar da verdade que ele pretendia escancarar – a de que o Sistema está podre. É uma verdade infinitamente menor do que a verdade contida em João 8:32. Mas, para o Capitão, a compreensão dessa verdade é o que levaria a sociedade a se libertar do jugo de gente como Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Lula.
Também é uma confusão de liberdades. Porque politicamente a palavra está associada ao cativeiro físico das senzalas, dos campos de concentração e dos gulags. Sem falar no cativeiro cotidiano dos servos que pagam seus impostos para sustentar a pinga boa dos seus senhores petistas.
A Bíblia, por sua vez, deixa claro que a verdade se refere aos ensinamentos que os cristãos devem seguir a fim de alcançarem uma liberdade que vai muito além da possibilidade de mandar o ministro Alexandre de Moraes... passear num campo florido. Ou de atacar as instituições carcomidas... com uma saraivada de beijos. Trata-se, veja só!, da liberdade para fazer o bem. E da liberdade do sofrimento causado pelos desejos terrenos. Inclusive o desejo de poder. Que coisa, né?
Ao citar repetidamente o versículo, talvez na esperança de que as pessoas, ao saborearem a liberdade (política, econômica), se viciassem na verdade política (falha como toda verdade humana), Bolsonaro só se esqueceu de um detalhe. Um detalhe importante. Um detalhe que talvez tenha lhe custado a reeleição. Me refiro ao detalhe de que as pessoas tendem a negar, rejeitar ou contestar tanto a Verdade de que falam as Escrituras quanto a verdade de que falam os anais do Estado. E nem adianta culpar a máquina de propaganda petista ou a polarização ou a decadência da Civilização Ocidental. É assim desde os tempos de Cristo.
Aliás, é por negar, rejeitar ou contestar a Verdade maior que consta no versículo bíblico que as pessoas (inclusive eu, você, o próprio Bolsonaro e muitos de seus apoiadores que hoje clamam por uma virada de mesa redentora) insistem em ignorar a mensagem de prudência, humildade e mansidão dos Evangelhos. Assim, acabam de tal modo apegadas às várias versões da verdadezinha política que, quando dão por si, se percebem voluntariamente aprisionadas. Desta vez pelo desejo de que o mundo se adeque à sua ideologia.