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O a, que já reclamou por ganhar menos do que o o, hoje teme ser substituído pelo x. O b pede reparação histórica por ser sempre o pior lado do disco. O c às vezes faz a transição para virar ç. O D reclama de gordofobia. O e ganhou na justiça direito a hora-extra nas palavras neutres. De bracinhos abertos, o f expressa toda a sua indignação feminista. O G reinava sozinho, mas agora divide espaço com o L, o B, o T, o I e até o +. O H, que um dia foi usado para reforçar a masculinidade, hoje não tem voz; o h decidiu assistir a essa balbúrdia toda sentado. Símbolo fálico de uma sociedade patriarcal, o I foi devidamente cancelado. O J é anzol para pegar quem cai no discurso progressista. O k se reproduz às gargalhadas. Quando se sente minúsculo, o L acusa o i maiúsculo de apropriação cultural. O m é um camelo; se fosse dromedário, seria n. O O, careca, fica boquiaberto quando o chamam de opressor. O p da vida abriu agora mesmo o Twitter para xingar qualquer coisa. O q quer quotas para queers. O r precisa da companhia do s para rir. O s, aliás, fundou uma ONG pela volta dos plural. O T tá trans... tornado. O u, descubro neste momento, é a letra mais inexpressiva do alfabeto. O V é vice, é versa e, ao se casar consigo mesmo, virou W. Para o X, o gênero é uma construção social. O Y não sabe se segue à esquerda ou à direita. O z, diante do debate progressista, vira para o lado e zzzzzzzzzzzzzz.
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Depois de algum debate, fui aconselhado a explicar que a crônica de hoje, curtinha, mas trabalhosa, foi inspirada num texto de Millôr Fernandes. Agora, se me perguntarem por que me lembrei desse texto no domingo cedo, antes mesmo do Globo Rural, e por que decidi cometer minha própria versão dele, não saberei responder.