“Adolescência”, da Netflix, é uma obra rara, mas que muita gente tem consumido com o emburrecedor olhar ideológico| Foto: Divulgação/ Netflix
Ouça este conteúdo

É, não deu. Tentei resistir, mas quando percebi estava cedendo ao Espírito do Tempo e apertando o “play” para assistir à minissérie “Adolescência”, da Netflix e na Netflix. Ou seria “do” e “no”? Mas não assisti por acaso. Até porque eu jamais assistiria por acaso a uma série com esse título. Assisti porque ouvi dizer que era uma série woke que usava um menino branco e conservador (oi?) para interpretar um criminoso que na vida real era negro.

CARREGANDO :)

Mentira. Assisti porque os novos episódios de “Casamento às Cegas – Suécia” ainda não tinham chegado à plataforma. Mas que o olhar estupidamente ideológico deu aquele empurrãozinho, deu. Assim como também certa curiosidade mórbida, reconheço, pelos longuíssimos planos-sequência – opção estética que meu amigo Francisco Escorsim me ajudou a entender e aceitar. Sim, aceitar porque, confesso, tinha achado aquilo um porre.

Uma das maiores burrices da atualidade

Pois bem. Depois de uma tarde inteira diante da TV, cheguei ao fim da série mais ou menos convicto de algumas coisas. A primeira delas é a de que o olhar meramente ideológico sobre obras de arte (termo que aqui uso sem muito critério) é uma das maiores burrices da atualidade. E você ainda me pergunta por quê? Porque, ora!, o olhar meramente ideológico estreita a nossa visão, reduzindo tudo a uma grande conspiração que opõe direita e esquerda, conservadores e progressistas, ricos e pobres, brancos e negros.

Publicidade

Quando, na verdade, “Adolescência” não é um recorte político de uma sociedade fragmentada. Pelo contrário, é uma obra ampla, um recorte etário/geracional que retrata duas realidades imutáveis. Digo, provavelmente a série retrate mais realidades imutáveis, mas no momento me ocorrem essas duas, então fica assim mesmo. A primeira delas é tão importante que merece um parágrafo só para si.

Família

Apesar de uma incansável campanha de difamação cujas origens remontam à Revolução Cultural ou até ao movimento romântico do século XIX, a família continua sendo o verdadeiro esteio do indivíduo. De todos os indivíduos. Desde os facínoras até os fariseus contemporâneos, passando por incels e até aqueles que não resistiram aos encantos diabólicos das ideologias.

É na família que encontramos apoio, perdão e aceitação verdadeiros. E aqui é importante deixar claro: em “Adolescência” a família de Jamie Miller, o menino de 13 anos que mata uma colega de escola, não é perfeita. Longe disso. Mas essa é outra falácia que a série, não sei se intencional ou acidentalmente, desmente: para a família ter valor, ela não precisa ser perfeita. Até porque nenhuma é.

Disputando a lavagem com os porcos

A outra realidade imutável que a série mostra, mas que só terão olhos de ver aqueles que superarem qualquer implicância ideológica, é uma realidade muito dura. Tão dura que, como vocês podem ver, estou demorando a dizer qual é. Será que eu esqueci? Sim, não, talvez? Lembrei: por mais que nós, pais, façamos tudo o que consideramos correto para educar nossos filhos, não há como protegê-los totalmente do mundo. Aceite: simplesmente não há.

É justamente na adolescência que nossos filhos começam a interagir com mais liberdade com esse mundo que é fascinante, sem dúvida, mas também é cruel e perverso. A adolescência (você há de se lembrar da sua) é aquele momento em que os mistérios da vida lhe são revelados e você fica meio perdido. Sobretudo aqueles que não têm uma base moral e religiosa sólidas. Usando a Parábola do Filho Pródigo como referência, é quando você pede a herança para seu pai e vai “curtir” – até se ver disputando a lavagem com os porcos.

Publicidade

Planos-sequência

E agora é aquela hora em que eu falo que “Adolescência” tem um roteiro fenomenal e atuações espetaculares – o que é bem raro hoje em dia. Dou uma enrolada, escrevo isso e aquilo, até que se torna inevitável falar dele: do plano-sequência. Porque os 4 episódios de “Adolescência” foram gravados numa tomada única, como uma longa e complexa coreografia. Eu achava que era frescura ou até mesmo uma reação a um cinema totalmente dependente dos efeitos especiais (CGI) e, mais recentemente, da inteligência artificial.

Mas não. Como explica meu amigo Francisco Escorsim, e tendo a concordar com ele, os planos-sequência não apenas nos colocam ultrarrealisticamente nas cenas, como também nos oferecem frestas pelas quais absorvemos a história. A primeira é a da polícia; a segunda, da escola; a terceira, da psicologia (isto é, da ciência incapaz de compreender o crime e o criminoso); e a quarta fresta é a da família.

“Se fosse meu filho tudo seria diferente”

Talvez você diga que ficaram faltando outras frestas interessantes, como a da própria religião – e tudo bem. Porque “Adolescência” não é uma obra fechada e muito menos dogmática. Nisso reside sua maior qualidade: a de fazer com que observemos uma tragédia sem que cedamos à tentação fácil, facílima, de julgarmos os envolvidos, classificando-os como heróis ou vilões absolutos, enquanto nos embriagamos da certeza hipócrita de que “se fosse meu filho tudo seria diferente”.

Ah, e sobre o criminoso negro da vida real x o criminoso branco e conservador da ficção, quem se importa? Você que é meu leitor inteligente tenho certeza de que não.

Comunidade no WhasApp

Não perca mais nenhum texto do Polzonoff. Entre para a comunidade no WhatsApp e receba todas as crônicas no conforto do seu celular. Basta clicar aqui.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
Publicidade