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Em meio a tantas notícias ruins, você faz um esforço tremendo para dar vida a um personagem que só quer degustar sossegadamente a vacina contra Covid-19.
Em meio a tantas notícias ruins, você faz um esforço tremendo para dar vida a um personagem que só quer degustar sossegadamente a vacina contra Covid-19.| Foto: Pixabay

Cinco e quarenta da manhã. Você acorda todo animado. Afinal, hoje é dia de dar vida a Gumercindo de Almeida, 42 anos, obeso mórbido, com frieira e dor nas juntas. Ao longo do texto, que você não chama de crônica porque se sente um tanto ridículo, Gumercindo vai assumir a função para a qual foi criado: a de sommelier de vacina contra Covid-19.

Mas já durante o café da manhã você lê que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, disse que, abre aspas, toda tirania deve ser afastada, inclusive a tirania da maioria que elege o Executivo e o Congresso, fecha aspas. E lembra que esse senhor é juiz no colegiado que forma a corte suprema – e não o pior deles. O sol ainda nem nasceu direito e a essa hora Gumercindo jaz num beco qualquer da minha imaginação. “Já era”, você pensa.

Uma pena. Na história que você pretendia contar, havia, por exemplo, uma cena em que Gumercindo estudava cuidadosamente as vacinas disponíveis, fazendo análises geopolíticas sobre cada uma das ampolas. Ele começaria pela Rússia e seria até uma oportunidade para eu divulgar o monitor de vacinas criado por meus colegas aqui da Gazeta do Povo.

Você passa uma porção generosa de manteiga sobre o pão deliciosamente amanhecido, bebe um gole de café com leite (cor C08457) e continua peregrinando pelo noticiário matinal, sem perceber que Gumercindo jamais ganhará vida e que a cena da degustação de vacina agora vaga pelo universo das ideias perdidas.

Dia nublado

Quando chega na parte em que Salim Mattar e Paulo Uebel pedem demissão do governo, você sente mais um baque. Não! Não vou me deixar abater. Você respira fundo, estufa o peito, joga os ombros para trás e bebe um gole demorado de suco de laranja. Não que você esperasse que o Estado realmente fosse cortar na própria carne um dia. Você tampouco via este governo aí como liberal de fato. O baque está mais na constatação de que é impossível viver e dar vida a um Gumercindo qualquer em meio a tanto ruído.

E um ruído sem graça nessa dramaturgia direcionada aos burocratas e que hoje em dia tanto cativa espectadores que podiam muito bem estar rindo de um tropeço ingênuo de um personagem comum como Gumercindo. Ou da dancinha de Manuela D’Ávila protestando contra o imposto sobre o livro. Meio atordoado, mesmo sabendo que não há nada de novo sob o sol, você vai à sacada para ver o astro-rei se exibir todo por detrás das montanhas. Mas o dia está nublado.

Ao avistá-lo na sacada, o cachorro do vizinho começa a latir e abanar o rabo entusiasmadamente. A amizade distante com o animal lhe dá um pouco de alívio. Você volta, se senta no escritório improvisado, liga o computador e começa a escrever. O sommelier de vacina neste momento é apenas uma ideia natimorta, mas você não percebe e insiste. Até que o telefone apita e você para para (maldita reforma ortográfica!) ver a mensagem.

É um meme qualquer envolvendo Camila Pitanga e malária. Ou melhor, a suspeita de malária. Ou melhor ainda: a desconfiança da malária. Um meme leva a outro, que leva a outro, e quando dá por si você passou a última hora afundado até o calcanhar no assunto. Ao fechar as redes sociais e tentar, de uma vez por todas, contar a história de Gumercindo, você tem a sensação ruim de ter aprendido um pouco sobre malária, um pouco sobre camila, um pouco sobre pitanga e muito sobre o espírito humano – incapaz de dar à moça o benefício da dúvida e de se compadecer com a doença dela e da filha.

Não vai ter texto

Nisso já foi a manhã toda. Triste por não conseguir escrever o que queria e até um pouco deprimido com a história da juíza que, em sentença, disse que um réu era criminoso “em razão de sua raça” (péssimo português, além de tudo), você pensa em avisar o editor que hoje não vai ter texto.

Mas daí se lembra da risada gostosa do filho (que faz aniversário hoje) e das palavras de um amigo falecido sobre não se deixar abater pelas manchetes escandalosas e desesperadas. Você se lembra de David Foster Wallace dizendo que somos como peixes e não nos damos conta de que o entorno é água. Você lembra que é aquilo que ama (o texto, a risada inaudível do leitor), e nunca aquilo que odeia (artistas “declamando” letra de protesto dos Detonautas).

E, de volta à mesa de trabalho, encontra lá o Gumercindo de Almeida, milagrosamente ressuscitado, degustando as últimas gotículas da vacina desenvolvida pela indiana Bharat Biotech e ressaltando o leve ardor na entrada (da agulha), seus tons (óbvios) de especiarias e sal rosa do Himalaia e seu retrogosto de água do Ganges.

[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]

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