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Estava aqui praticando meu esporte preferido e me perguntando se no fundo (ou nem tão no fundo assim) a direita – da qual, se ainda não fui expulso, me considero parte – está tomando por rival alguém que lhe serve de modelo. Estou falando de Alexandre de Moraes e o desprezo supremo que ele nutre pelas míticas 4 linhas da Constituição quando se trata de fazer prevalecer sua vontade. Vontade essa que, infelizmente, coincide com a dos nossos adversários políticos.
Em outras palavras, estava me perguntando como eu – e, já que estamos de bate-papo, você – reagiria a um Alexandre de Moraes ultrazeloso dos valores conservadores, liberais e cristãos? Será que eu apoiaria, a despeito das flagrantes ilegalidades, só porque a minha causa e a desse Xandão-de-sinal-contrário são comuns? Não sei e, para responder a essa pergunta, vou ter que imaginar. Eu o convido a imaginar comigo, mas antes.
Antes me permita esclarecer, pela décima vez e quantas forem necessárias, que meu trabalho é tentar estabelecer uma conversa com você, leitor. Não é apontar caminhos, nem defender ou condenar. Muitos menos influenciar – até porque não sou miss, mas li “O Pequeno Príncipe” e a ideia de ser responsável por uma multidão anônima e cativa me dá calafrios. Meu trabalho, pois, é a gente se divertir e pensar juntos e chegar a conclusões as mais diversas possíveis.
Imaginemos, pois
Dito isso, você se lembra de quando Alexandre de Moraes era atacado pela esquerda e exaltado pela direita? Não faz muito tempo. Por sinal, Moraes chegou ao ponto de ministro da Justiça, se não me engano, por ter agido como um xerifão contra o crime organizado em São Paulo. E nos primeiros meses de atuação no STF, deu a entender que seria um nome da “direita golpista” na corte. Lembram disso? Pois é. O mundo dá voltas.
Imaginemos, por exemplo, que na votação pela derrubada da prisão após condenação em 2ª instância, Alexandre de Moraes tivesse votado pela manutenção da medida. Isto é, contra a soltura de Lula. Ah, mas nesse caso nem precisa imaginar, porque fui consultar a memória e o Google para descobrir que Alexandre de Moraes, ao lado de Barroso, Fux, Fachin e Cármen Lúcia, votou mesmo pela manutenção da prisão após condenação em 2ª instância. Acredita?
Mas aí Toffoli abriu o Inquérito do Fim do Mundo e deu a relatoria a Alexandre de Moraes. Acho que foi esse o tal do ponto de inflexão. O poder lhe subiu à cabeça e... Imagine. Imagine que Alexandre de Moraes aceitou a relatoria para ter como alvo personalidades e instituições de esquerda. Imagine que ele tenha censurado Felipe Neto. Imagine que ele tenha ameaçado cassar a concessão da Globo. Imagine que Daniela Lima e Marcelo Lins tenham sido obrigados a se exilar.
Esqueceu de mencionar...
Tá imaginando? Ótimo. Tá gostando? Preocupante. Mas, já que chegamos até aqui, continue imaginando. Imagine agora seguidas operações da Polícia Federal em defesa da democracia e contra o comunismo. Randolfe Rodrigues e Gleisi Hoffmann vão à tribuna falar em amplo direito de defesa, em devido processo legal, em Constituição, etc. No dia seguinte, Xandão manda prender três jornalistas que o chamaram de Xandão, bem como mil militantes do MST e daquela outra sigla proibidona lá.
Fico por aqui, mas suponho que você continue imaginando aí. É o famoso “esqueceu de mencionar...”. Que de esquecimento não tem nada. É que, se fosse para citar todas as ilegalidades dos últimos anos, o texto não teria fim. Além disso, você é perspicaz e a esta altura já entendeu o que significa esse risinho no canto da boca: que o que nos revolta não é o método alexandrino, e sim o fato de esse método até aqui eficaz de esmagar um dos espectros políticos não estar sendo usado a nosso favor.
Não precisa ficar mal por isso. Afinal, somos humanos e, portanto, falhos. Incapazes de corresponder às expectativas que criamos para nós mesmos. Mas que o exercício de imaginação sirva para reconhecermos que nos falta a tal da “cultura democrática” – que nada mais é do que defender a coexistência de pontos de vista antagônicos e mutuamente repugnantes. Esse é um dos sintomas de uma sociedade doente. Uma sociedade que, com medo de ser exterminada por seus vizinhos, prefere exterminá-los antes.