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É assim:
- Você olha em volta e está todo mundo vivendo a sua vida, anestesiado pelo conforto. Pelas dancinhas do TikTok, pelos reels do Instagram, pelo Jogo do Tigrinho e pelos sites de apostas. Para que liberdade se a gente pode comer no Méqui de vez em quando? Quem se importa com o devido processo legal, Constituição, Estado Democrático de Direito? Basta não cometer nenhum crime. E vida que segue.
- Você se sente sozinho ou, na melhor das hipóteses, fazendo parte de uma minoria constantemente esmagada pelas vozes estridentes das muitas caixas de ressonância do Sistema: os jornalistas cooptados, os artistas calados pelas benesses das leis de incentivo, os intelectuais com suas sinecuras e os militantes com a arrogância de quem se julga “do lado certo da história”.
- Você se pergunta se está errado ao ver tanta gente batendo palma para as ilegalidades que beneficiam seu lado da contenda ideológica.
- Você pega os diários de Victor Klemperer para ler. E desiste. Nem tanto pelas coincidências entre a realidade atual e o Nazismo, e mais pelas diferenças que nos dão a ilusão de normalidade. Se não há campos de concentração não é tão grave assim, você pensa, numa tentativa inútil de autoconsolo, ignorando intencionalmente o principal: alguém louco o bastante para ocupar um cargo com poderes absolutos jamais os usará para o bem.
- Você se lembra das primeiras medidas de Alexandre de Moraes, evidentemente à margem da Constituição, e de que reagiu a elas com a esperança de que surgiria alguém para deter o homem. Ou pior: com a esperança de que o homem uma hora perceberia seu erro. Você se sente um lixo por isso.
- Enojado consigo mesmo, você entra num espiral de lembranças da própria covardia. E se arrepende de não ter defendido com mais ênfase Allan dos Santos, Daniel Silveira e Oswaldo Eustáquio. Ou de ter reagido com inegável “nojinho literário” quando alguém evocou aquela velha história do “um dia vieram e levaram o meu vizinho...”.
- Tomado por uma avassaladora sensação de impotência, aqui e ali lhe ocorrem vislumbres de heroísmo e martírio. Mas tudo é imaginação. Eu sei e você sabe e nós sabemos que tudo é imaginação. Como se fosse possível escapar deste nosso pesadelo muito real.
- Dia após dia, você lê textos excelentes que apontam o absurdo disso e daquilo. Como os do J. R. Guzzo e os meus – às favas os escrúpulos de modéstia! E pensa “que absurdo!” ou “não acredito nisso!” ou “surreal!”. E vai dormir para, no dia seguinte, ler outro texto excelente que esmiúça tintim por tintim as ilegalidades do Alexandre de Moraes. Para quê?
- Alguém – um cínico – se aproxima e lhe pergunta: “tudo isso por causa de uma rede social?”. E você não sabe o que responder porque simplesmente não é possível que só você esteja vendo a ascensão de um regime mais do que autoritário: totalitário.
- Você se percebe nutrindo uma vaga esperança de que o 7 de Setembro seja mastodôntico, mas aí se dá conta de que Rodrigo Pacheco é presidente do Senado e se pergunta se não está na hora de marcar uma hora com o psiquiatra.
- Você não liga para o psiquiatra. Em vez disso, reza pedindo a Deus forças para aguentar o que está por vir. Porque você sabe que a situação só vai piorar. Afinal, independentemente de Alexandre de Moraes, somos livres. Inclusive para nos omitirmos e aceitarmos o jugo tirânico do sujeito.
- Você se pega pensando coisas horríveis e impublicáveis.
- Aqui e ali, você vê as justificativas egoístas se sobrepondo aos princípios. “Se o Twitter fechar, finalmente conseguirei terminar de ler um livro” ou “Se o Xandão banir o Twitter, o PIB vai aumentar uns 150%” ou [DANDO DE OMBROS IGUAL A UMA CRIANÇA MIMADA] “Não uso Twitter pra nada mesmo. Não me importo”.
- Ou então: “Pelo menos ele evitou um golpe de Estado”.
- Você se vê na obrigação de explicar que não é só o banimento do Twitter, que nem aconteceu ainda, mas já dou como certo.
- Você percebe que a censura já está interiorizada, porque escreveu este texto sem chamar de ditadura o que é ditadura, e sem chamar de ditador quem é ditador.
- Você se pergunta “até quando?”, pensa que 2043 está muito longe, e se pergunta se vai aguentar, se não vai mesmo aparecer ninguém para deter esse cara, se o Senado vai continuar de joelhos, se a imprensa vai insistir em defender a censura, se as pessoas na sala de jantar vão permanecer ocupadas em nascer e morrer.
- Você reza. Reza mais. Reza muito. Porque, por mais que você não seja pessimista, neste momento seus olhos humanos, sinceramente, são incapazes de ver uma saída.
- É assim.