A homilia de sábado trouxe, mais uma vez, os versículos do Evangelho de Mateus nos quais Jesus exorta os fieis a amarem seus (deles, nossos) inimigos. E aqui fico imaginando que muita gente desistiu de ler o texto já na palavra “homilia”. Sinal dos tempos. Mas não reclamo, porque você (é, você!) ainda está por aqui e é o que importa. Melhor ainda: impossível ser inimigo de leitores tão generosos.
Mas eu falava de Mateus 5: 43-48. No mundo embriagado de soberba, da última vez que mencionei a necessidade de amarmos nossos inimigos ouvi de alguém que “há muitas passagens erradas na Bíblia”. Eu ia dizer que foi uma reação surpreendente, mas, pensando bem, nada mais natural. O materialismo ateu (mesmo aquele que se diz cristão) tirou o protagonismo de Deus e Suas obras e o transferiu para o homem e a incrível imagem que ele faz de si mesmo. Deu no que deu. Dá no que dá.
A dificuldade de amarmos nossos inimigos aumentou com a desumanização do debate. E, sejamos sinceros, da vida. Hoje interagimos cada vez mais com avatares e screen names e menos com nossos vizinhos, amigos, parentes e colegas de trabalho. Tem gente que gosta, que exalta as facilidades da tecnologia. E tudo bem. Mas não dá para negar essa consequência negativa: o outro perdeu consistência. Se transformou numa abstração. Tanto o amigo quanto o inimigo foram reduzidos a uma ideia.
Peguemos um sujeito odiado pelas multidões. Lula – por que não? Poucos entre nós apertamos a mão de Lula. Menos ainda são os que tiveram a oportunidade de trocar dois dedos de prosa com o cara. Digo, excelentíssimo cara. Raros são os que podem dizem que conhecem o homem por trás do personagem. Nem a Janja deve conhecer! E, no entanto, considerá-lo nosso inimigo pessoal é facílimo, assim como é dificílimo amarmos esse inimigo que, se você parar para pensar, é apenas uma abstração. Quando muito, um bezerro de ouro.
(Aos que tiveram o privilégio de apertar a mão do Lula, convém dar uma tateada nos bolsos para ver se está tudo no lugar).
Diferente e melhor
Ao dizer aquelas palavras, porém, Jesus não tinha em mente esses inimigos abstratos que conhecemos apenas das manchetes escandalosas. Até porque os césares e reis e imperadores eram uma realidade distante do homem comum. Talvez o que vou dizer agora choque os mais jovens, mas aqui vai: naquele tempo não havia Tik Tok nem Twitter. Jesus falava do inimigo cotidiano, ao alcance de um braço: um parente, um vizinho, um colega de trabalho, um ex-amigo.
Na homilia a que me referia na primeira frase, o Padre Paulo Ramalho explica o óbvio que precisa ser repetido até que alguém o compreenda: a inimizade nasce da soberba. Da sensação de que somos intelectual e/ou moralmente superiores aos nossos adversários. Da ideia de que, nas mesmas circunstâncias e com as mesmas oportunidades deles, faríamos diferente e melhor. Será que faríamos mesmo?
Este, aliás, é outro tema recorrente neste espaço. Você tem certeza de que, no lugar de Lula, agiria diferente dele? Algo me diz que não. Não muito. Donde se conclui com alguma melancolia que sentimos raiva de nossos inimigos porque vemos refletidas neles nossas características mais deploráveis. Mais repugnantes. Que nos causam mais asco. Esse é mais um obstáculo (praticamente um Everest!) nessa empreitada necessária de amarmos nossos inimigos.
É preciso humildade para reconhecer que, numa escala menor, em casa, na escola ou no trabalho, todos já cometemos os mesmos pecados que, em Lula, nos revolta e nos faz espumar pela boca. Já mentimos e já nos contradizemos e já trocamos nossas convicções por um interesse momentâneo. Ora, quanto mal não causamos rotineiramente aos que nos rodeiam, com pensamentos, palavras, gestos e omissões que podem não ter assim o peso de um Mensalão ou Petrolão, mas é como se tivessem?
Não é um passa-sabão
O problema, no caso dos nossos inimigos abstratos e reais, é que muita gente confunde amor e condescendência. Passividade. Permissividade. Em português claro: bundamolice. E confunde amor com uma ingenuidade que resvala, e muito, na parvoíce. Mas amar nossos inimigos não é passar a mão na cabeça e dizer “pega aqui meu voto, vai lá e destrói o país num terceiro mandato”. Nada disso. Amar tampouco significa não sofrer com a maldade que atribuímos a nossos inimigos.
Amar nossos inimigos significa perceber em nós mesmos defeitos tão ou mais reprováveis do que os dos deles. Ou vai me dizer que você nunca foi arrogante como um Alexandre de Moraes ou vingativo como um Lula?! Por fim, amar significa reconhecer que nossos inimigos têm a mesma dificuldade que nós temos para corrigirmos nossos defeitos. Ou vai dizer que para você é fácil ver o Lula aumentando impostos e não recorrer à ira impotente ou se submeter ao desejo preguiçoso de que o mundo todo fosse diferente?
O argumento divino serve para o outro lado também. Se ao menos eles acreditassem em Deus, talvez se sentissem mais leves ao amarem os que xingam de qualquercoisafóbicos e racistas e opressores e fascistas e sei-lá-mais-o-quê. Se descessem de seus pedestais e se reconhecessem falhos e incapazes de alcançar a pureza que pregam, talvez se deparassem e se surpreendesse com a luta cotidiana do outro para fazer o certo.
E não pense o leitor que este texto é um sermão. Uma bronca. Uma reprimenda. Um passa-sabão. De jeito nenhum. Aqui me confesso um pecador quase sempre incapaz de perdoar, quanto mais amar!, meus inimigos, sejam eles reais ou imaginários, privados ou públicos. Escrevo, pois, para organizar os meus pensamentos e também me convencer de que preciso me reconhecer falho e sujeito às tentações comuns do nosso tempo. Não é fácil. Se bem que ninguém nunca disse que seria.
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