Observo, observo, observo. Escuto mais do que falo. Abordo ou sou abordado por pessoas sem diploma, ou cuja especialidade faço questão de desconhecer, porque naquele momento de interação entre nós, somos duas pessoas conversando e não dois currículos disputando quem é o melhor. Nunca divirjo, por mais que a opinião seja flagrantemente estúpida, baseada em fatos obtusos. E assim sigo sendo cronista.
Nos últimos dias, apesar das restrições impostas pela pandemia e pela coceira provocada pela máscara, conversei muito com pessoas de todos os tipos. Ao mesmo tempo, e porque sou um fraco, um idiota ou simplesmente um entediado, acompanhei com muita apreensão as notícias e comentários sobre esse monotema chamado Covid-19. Minha esperança era criar uma síntese entre o que me diz o analista político e o faxineiro que passa o dia limpando o banheiro do aeroporto.
A cada dia que passava, mais se consolidava a impressão de que a realidade 1 e a realidade 2 falam línguas completamente diferentes. O exemplo mais evidente disso é a popularidade de um tal de Jair que ocupa temporariamente o Palácio do Planalto e que, para uns, é apenas um sujeito “simplão”, incapaz de prover vacinas para a população, mas honesto e assim uma espécie de cruzado solitário contra "tudo isso que está aí". Para outros, ele é um genocida que precisa ser urgentemente apeado do poder.
Pessoalmente, me angustia muito não conseguir conciliar as duas realidades. A cada conversa que eu tinha, imaginava que dela podia sair um texto com uma análise pontual sobre uma questão xis. Imediatamente, porém, previa as reações furiosas das pessoas que vivem na realidade 2 e conhecem a realidade 1 de ouvir falar ou de um passado não tão remoto assim, de quando as pessoas ainda discordavam sem se odiar – só porque não vale a pena.
“Bolsonaro já era”, me diz alguém cuja vida se passa basicamente nas redes sociais. E expõe os muitos bons motivos para constatar isso: o discurso belicoso, os imbróglios dos filhos, o português sofrível, os mal-disfarçados delírios de napoleãozinho tupiniquim, a submissão ao Centrão e, por último mas não menos importante, sua atuação no enfrentamento da pandemia.
Por um instante, penso que seria legal escrever um texto com o título “Jair já era”, expondo da melhor forma possível todos os mui sensatos argumentos desse alguém. Por um instante (o mesmo), a análise dele parece acertadíssima – impressão que ganha força a cada tuíte da minha queridíssima imprensa. E meu próprio cansaço, que não é um cansaço político, e sim metafísico, parece justificado.
Lembro-me assim por alto dos últimos meses do governo de Dilma Rousseff, quando o impeachment era dado como certo. Foi estranho viver aquele tempo. Havia um cheiro de fim de feira no ar – cheiro que me sobe às narinas sempre que o presidente Jair Bolsonaro fala uma daquelas bobagens que renderão manchetes indignadas, acompanhadas pelo adjetivo de sempre: inaceitável.
Mas daí saio das redes sociais. Observo, converso, ouço. E fico sabendo, entre outras coisas, que “a mídia já decidiu e vai derrubar Bolsonaro”. Fico bem quieto e não me identifico como jornalista. Por acaso sou louco? Adiante, aprendo que “olha aí esse povo todo espremido no busão [passa um busão realmente lotado]. E o cara ainda vem me falar de fechar tudo? Isso é uma covardia!”. Me surpreendo ao ouvir que “dos três filhos, só o Flávio tem alguma cabeça. Os outros são meio doidinhos. Mas o Flávio, não”. E, por fim, sou intimado a esclarecer se “tu gosta do Lula? Porque, ó, o Bolsonaro é um idiota, mas o Lula não dá, cara!”.
Observo, ouço. Nunca divirjo. Quando Sicrano diz “olha o preço da gasolina! O certo era o dono da refinaria ser o dono do posto também. Aí ele vai pôr na bomba o mesmo preço da refinaria, entende? Tão simples isso”, reavalio mentalmente tudo o que sei sobre a precificação dos combustíveis e o mercado do petróleo. E me vêm à mente de Delfim Netto a Mises. Respondo a tudo com uma sucessão de arrãs, sins e claros.
Ao deitar a cabeça no travesseiro, concluo com duas gotas de melancolia que me falta a cara-de-pau (e consequente arrogância) de analisar, com a certeza de um pai-de-santo, se a política vai para cá ou para lá e por quê. Resta-me, portanto, observar e ouvir e ouvir e observar, na esperança de criar uma imagem mental que, se não me traz paz, tampouco me leva ao desespero.
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