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Estou há horas tentando decifrar o que escrevi no bloquinho. Acontece com frequência e, nessas ocasiões, sempre me lembro dos velhos cadernos de caligrafia que odiava preencher. Eis que, depois de muito ponderar sobre um "t" que parece um "l", dos hieroglifos tiro uma reflexão apressada e que dizia: “Pôncio Pilatos é um dos personagens mais abomináveis dos Evangelhos. Um homem que não foi capaz de fazer uma escolha moral simples e óbvia. Respeito mais quem faz uma escolha errada do que quem se omite. Não é hora de lavar as mãos”.
E não é mesmo!
O problema com esse tipo de referência a Pôncio Pilatos, ainda mais quando aplicada a uma circunstância específica, a escolha política óbvia entre Jair Bolsonaro e o amigão do Ortega, Lula, é que sempre aparece alguém para fazer a ressalva fatídica e desonesta de que um dos objetos da escolha não é Jesus. E eu não sei?! Por acaso tenho cara de idólatra?! – dá vontade de responder, mas não respondo. Foi uma observação desse tipo que me fez desistir de tornar pública a reflexão, reduzindo-a a uns garranchos num caderninho.
E me obrigando a ser mais explícito do que a Lei Geral das Crônicas autoriza. Os pilatinhos contemporâneos que empinam o nariz para dizer que, entre Bolsonaro e Lula, preferem lavar as mãos e ficar em casa cozinhando o galo ou ainda indo até a seção eleitoral só para admirar o que eles consideram um espetáculo deprimente, não estão fazendo uma escolha entre o Filho de Deus e um bandidinho. Até porque não foi essa a escolha que Pilatos se omitiu de fazer. Ele não sabia do caráter divino de Jesus. A realidade como ele a enxergava naquela situação, portanto, pressupunha uma escolha moral simples e óbvia entre dois homens: um que ele sabia ser um bandido (e, ao que consta, até um assassino), e outro no qual ele não via nenhum sinal de culpa.
Veja só: não é a covardia o que incomoda no ponciopilatismo de que sofrem os liberais ou conservadores de alta estirpe. Por outra, é a soberba, a arrogância e a prepotência de quem se considera indigno de sujar as mãos na “tosquice” de Bolsonaro para impedir a volta do amigo de Daniel Ortega, que não venceu nem assumiu e já está dando mostras de seu caráter autoritário.
De volta a Pôncio Pilatos, personagem que não me sai da cabeça, fico aqui pensando no que ele faria se não tivesse a opção de lavar as mãos. De sair pela tangente. De estufar o peito para dizer “não vou nem me levantar da poltrona”. De enfrentar filas só para dizer que não prefere nem um nem outro. Os cínicos dirão que Pilatos teria escolhido Barrabás de qualquer maneira. Já os fiéis da Igreja Copta acreditam que ele teria escolhido Jesus. Por isso, fizeram de Pilatos um santo.
Da mesma forma, me pergunto em quem esses aí que confessam a opção autoindulgente pelo voto nulo/branco ou abstenção votariam se fossem obrigados a fazer a escolha. Não “A” escolha nem uma escolha: esta escolha que temos hoje diante de nós, entre o homem falho, às vezes insuportável e repugnantemente falho, e um barrabás arquetípico. Entre a imagem fabricada de ameaça à democracia e a realidade provada de ameaça à democracia. Entre um defensor da vida que fala palavrão e dá de ombros para a liturgia do cargo e um abortista que promete picanha e cervejinha para o povão.
Mais do que de uma suposta orfandade ideológica por parte dos conservadores-raiz, o ponciopilatismo nasce da já mencionada soberba, e também da vaidade e da frouxidão moral que são a marca registrada dos intelequituais (apud Millôr) brasileiros. Inclusive e sobretudo os que clamam para si o título de “intelequitual di direita”. A vaidade é aquela de não querer ser visto como uma espécie de leproso político por seus pares; e a frouxidão moral é aquela que procura a citação perfeita para justificar o voto nulo que, ele sabe, eu sei e nós sabemos, tende a favorecer Lula.
Não que minha estima tenha lá algum valor no grande ou no pequeno esquema das coisas, mas de fato respeito mais aqueles que optam explicitamente pelo barrabás de Garanhuns do que os que lavam as mãos, deixando, ão-ão-ão, a decisão para a multidão. Afinal, por mais equivocados que sejam e são, os isentões petistas (sic) ao menos assumem a responsabilidade pela própria escolha – uma escolha equivocada, mas que não se esconde sob o manto da arrogância.
No mais, sinto ser eu a lhe dizer, mas é bem provável que seus pares o olhem com reprovação independentemente do seu voto. E, no paredão, seja ele real ou simbólico, de nada lhe servirá aquela citação do filósofo Xis ou do cientista político Ypsilon que você, conservador, escolheu com tanto cuidado para justificar as mãos agora limpíssimas – e também caladíssimas, imobilíssimas, mortíssimas.