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Polzonoff

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Carta #28

O que nós e os ministros do STF podemos aprender com “Antígona”

ANTIGONA
Antígona diante do cadáver insepulto de Polinice, em quadro pintado por Nikifóros Lýtras. (Foto: Nikifóros Lýtras/ Wikipedia)

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Caro leitor,

Por influência do grande Gabriel de Arruda Castro (ele é alto mesmo), li “Antígona”, a peça que Sófocles (também grande, porém baixo) escreveu em 442 a.C. É, faz tempo. E, como sempre acontece nessas ocasiões, fiquei pasmo comigo mesmo por não ter lido uma obra tão fundamental antes. Mas não vou ficar aqui me fustigando. Só espero que você não cometa o mesmo erro que eu.

Aliás, mesmo erro que cometeram as últimas gerações, educadas que fomos num sistema que privilegia a eficiência em detrimento da formação humanista. Já usei este espaço para escrever sobre a péssima bagagem cultural de nossas autoridades, mas a crítica serve para mim e para você também. Porque, se queremos entender quem somos e o que acontece ao nosso redor, precisamos abandonar urgentemente os reels, as dancinhas no TikTok, os panfletos políticos e o onipresente e nocivo “1984”. Precisamos buscar a sabedoria imutável dos clássicos, por mais enfadonhos, lentos e difíceis que eles nos pareçam.

Xandão de Tebas

Porque tudo o que hoje consideramos absurdo e inaceitável está registrado lá naquelas cenas escritas há quase 2500 anos, para uma plateia que jamais poderia imaginar o grau de complexidade a que chegaria o mundo. Mas que era capaz de compreender que os dramas humanos são eternos e os mesmos. E que tudo de bom e de ruim decorre das escolhas que fazemos com base em nossos valores morais. O que serve para Antígona e Creonte, por exemplo, pode muito bem servir para mim e para você.

Ou, no caso, para “o homem comum” e “o tirano”. Pelo menos é essa a leitura mais comum da peça. Tudo porque Creonte, vejam vocês, cismou em usar seu poder absoluto para impedir o sepultamento de um dos irmãos de Antígona. Pra quê?! A grega ficou uma fera! E se recusou a obedecer à ordem do Xandão de Tebas. Ele bateu o pé, disse que não é não e ponto final. E condenou as desobedientes Antígona e a irmã à morte. Até que entrou na parada um adivinho que falou que a teimosia de Creonte não acabaria bem e tal. (Tá ouvindo, Xandão?).

Arrogância atrai loucura

As palavras do adivinho Tirésias deveriam ecoar nos corredores frios e certamente mal-assombrados do Supremo Tribunal Federal: “Os males desta cidade procedem da tua cabeça, STF”[grifos e vocativo meus]; “Todos os homens comungamos do erro”; “A arrogância atrai a loucura”. “Que bravura há em exterminar um cadáver?” e “[O] juízo é o maior dos bens”. A diferença é que, ao contrário de Alexandre de Moraes e dos outros ministros do STF, o tirano Creonte dá ouvidos ao homem que, apesar de ser adivinho, na peça interpreta o papel da Sensatez.

Deveriam todos os poderosos, vistam eles togas ou não, dar ouvidos a essas palavras que expõem nossas misérias morais e nos reduzem à nossa condição humana necessariamente imperfeita? Deveriam, mas não vão. A gente sabe que não vão. Não tenho nenhuma esperança quanto a isso. Mas espero, isso sim, que as palavras de Tirésias ecoem na sua mente sempre que você se sentir tentado a insistir numa decisão estúpida e irracional (ou ilegal) só porque você pode. Só porque lhe convém.

Pretextos falsos

O que nos traz a uma leitura alternativa da peça, proposta pelo meu amigo Rafael Ruiz, que pergunta: a partir de que momento o que parece convicção se transforma em fanatismo? Argumenta meu amigo que Creonte é tirano, claro, mas pelo menos tem a humildade de, por medo da ira dos deuses, mudar de ideia. Já Antígona, a aparente mocinha da história, está duplamente escravizada: pela tirania de Creonte e por suas convicções que, se você parar para pensar, não passam de reles orgulho ferido.

Aqui serei obrigado a tornar explícita a analogia suscitada por essa interpretação: não viverá Alexandre de Moraes escravizado pela convicção tola e orgulhosa de estar defendendo a democracia? Será que o que talvez um dia tenha sido boa intenção não se transformou em fanatismo, em guerra que se luta até a morte, mesmo que sob pretextos falsos?

Caturrice fanática

Deixando de lado a analogia com nossa tragédia político-jurídica tupiniquim, vale a pena nos perguntar: nossas convicções (e aqui me refiro mais às convicções que a serpente da ideologia inoculou em nossos corações cheios de espaços vazios) estão mais próximas da honestidade santa de São Thomas More... ou da caturrice fanática da amaldiçoada Antígona/Xandão, que tanto mal causou a si e aos seus? Enquanto você pensa daí, eu penso daqui e a gente vai pensando junto.

Aquele abraço do
Paulo

[Esta coluna é uma reprodução da carta que chega à caixa postal dos assinantes toda sexta-feira. Se você ainda não se inscreveu, lá em cima, logo depois do primeiro parágrafo, tem um campo para isso].

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