Em “Eu Também Vou Reclamar”, lançada em 1976, Raul Seixas já ria do pessoal da MPB que ganhava muito dinheiro com as músicas de protestos contra a Ditadura. E, sem muitas delongas, “ameaçava” parar de fazer shows para ficar reclamando com rimas pobres no ar-condicionado do estúdio.
Mas é que se agora pra fazer sucesso
Pra vender disco de protesto
Todo mundo tem que reclamar
Eu vou tirar meu pé da estrada
E vou entrar também nessa jogada
Pedindo desde já perdão pela obviedade, foram esses versos assim meio proféticos de Raul Seixas que me vieram à cabeça ao desperdiçar preciosos 20 minutos da minha vida para ouvir dois exemplos desse truque antigo que é posar de resistência para ganhar dinheiro fácil. A primeira música, “Hino ao Inominável”, tem intermináveis 13 minutos e alguma coisa. E não, não acho que os 13 minutos sejam à toa. Afinal, se tem uma coisa que esses artistas de hoje em dia não dominam é a sutileza.
Sobre “Hino ao Inominável”, antes de comentar alguns trechos da caudalosa canção tenho que dizer que os compositores Carlos Rennó e Pedro Luís perderam uma ótima oportunidade de cunhar o trocadilho “Hinominável”. Seria muito mais catchy. Se bem que eles devem ter levado em conta a cultura musical e literária do público dado a ouvir essas coisas para chegarem à conclusão de que trocadilhos, mesmo os piores, estão a anos-luz da capacidade de compreensão de uma geração educada à base de Paulo Freire.
A música começa com Wagner Moura, o eterno Capitão Nascimento, meio cantando, meio reclamando, meio batendo o dedinho na quina da mesa, meio gralhando os versos: “’Sou a favor da ditadura’, disse ele/ ‘Do pau de arara e da tortura’, concluiu”. O tom jornalístico da música é para conferir a ela alguma credibilidade? E não sei vocês, mas tenho a maior preguiça desse papo. Dessa nostalgia macabra. Este, aliás, foi o maior mal que a ditadura fez ao país: deu origem a toda uma geração traumatizada por tabela. Por que não se traumatizaram com os malfeitos das ditaduras de esquerda é que eu não entendo.
Aí, depois de usar a forma arcaica “contraditar” (em vez de “contradizer”), entra alguém para... Não! Não posso continuar pensando que você, leitor, talvez não tenha prestado atenção à frase anterior. Eu disse que os compositores usaram “contradita” no lugar de “contradiz”. Percebe a preocupação dessa gente em se comunicar com o seu suposto público?
Continuando. Alguém entra para meio cantar, meio declamar, meio choramingar, meio não dizer nada: “E no real o incrível, o inacreditável/ Entrou que nem um pesadelo, infeliz/Ao som raivoso de uma voz inconfiável/ Que diz e mente e se desmente e se desdiz”. Rimar “inacreditável” com “inconfiável” é realmente obra de algum prodígio da poesia. Terão sido esses versos de Pedro Luís ou de Carlos Rennó? Será que eles brindaram ao encontrarem a rima?
Aí tem, na ordem, estrofe sobre o racismo, sobre “injúria não inocentável” (o que quer que seja isso) e sobre índios. Tem uma parte em que os autores se vangloriam da própria genialidade e, como se estivessem enfrentando uma Comissão da Censura safra 1969, dão uma piscadela para o ouvinte que a essas horas ainda não furou o tímpano. Olha só como eles "ludibriam" a censura imaginável omitindo o nome do presidente: “Se pronuncia assim o impronunciável/ Tal qual o nome que tal ‘hino’ nunca diz/ Do inumano ser, o ser inominável/ Do qual emanam mil pronunciamentos vis”. Perto disso, o desatino de Chico Buarque com o verso trocadilhesco “afasta de mim esse cale-se” parece até qualquer coisa digna de aplauso.
Plforiwy23t6,flgjihtyw8565wtdkoodnhja. Desculpe. É que ri alto demais e acabei assustando a Catota. Já disse que o “hino” tem inacreditáveis 13 minutos e uns quebrados? Na minúscula probabilidade de ter ouvido essa música, até o chato do David Gilmour deve ter achado chato. A música (as aspas estão implícitas) continua falando do sofrimento dos homossexuais, dizendo que os bovinos são melhores do que os bolsonaristas (tudo com “sutileza poética”) e culmina com o refrão:
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Que ruína, meu filho?! Aquela em que a Dilma nos meteu?! – tenho vontade de perguntar, mas daí me lembro do “mas” que enfeita as boas notícias econômicas. E me lembro também que artista só é artista porque vive numa bolha de mordomia e bajulação e porque nunca aprendeu regra de três. Por falar em matemática, em seguida a música fala dela, a ciência. Depois meio ambiente. Atenção para os versos: “E assim negou e renegou o inegável/ As evidências que a ciência vê e diz/ Da derrubada e da queimada comprovável/ Pelas imagens de satélites”.
Eu poderia continuar descrevendo e comentando verso por verso, estrofe por estrofe. Mas a vida é curta e, no mais, tenho que falar ainda de “Bolsominions”, de Chico César. Por dever jornalístico, pois, vou encerrar esta parte da crônica informando que a música tem ainda discurso antipolícia, fala que “o que resolve são canhões, revólveres” (ãhn?), continua falando sobre armas, daí muda bruscamente para UTI e Covid, dobra à esquerda (sempre à esquerda) para falar de livros e rir dos erros de português de Jair Bolsonaro e xinga todo mundo de ignorante. E entra um refrão.
Calma que eu já termino. Na verdade, já era até para ter terminado. Mas é que acabei de me deparar aqui com uma estrofe cheia de palavrões e referências a fezes que, curiosamente, termina com “O cheiro podre da sua retórica/ Escatológica se espalha no país”. Freud diria que isso foi escrito diante de um espelho. E, neste caso (só neste caso), quem sou eu para refutar Freud?
A música de trezzzzzzzzzzzzze minutos conta com inacreditáveis 30 “intérpretes”. Era para ser 22, mas acho que ia dar muito na vista. Pensei até em citar o nome de todos aqui e, assim, talvez conseguir chamar a atenção do algoritmo do Google. Mas desisti porque o meu leitor não merece tamanho castigo. E, no mais, chegou a hora do intertítulo e da análise de uma música que, surpreendentemente, consegue ser ainda pior do que os 13 minutos do “Hinominável”.
Reggae quase punk de protesto
Chico César, autor dos imortais versos “Ô amarrara dzaia soiê/ Dzaia dzaia/ Aí iii iinga dunrã”, descreve a música “Bolsominions” como “um reggae quase punk de protesto, ao modo de Peter Tosh ou The Clash”. Não sei você, mas eu fiquei punk da vida ao ler esse desatino que, no entanto, nem é o pior. Afinal, no textinho no qual o cantor fala da sua mais recente criação, ele começa avisando hipócrita e cinicamente que “essa é uma canção em defesa da fé cristã”.
Aí começa a música. Reggae é aquela mesma coisa de sempre, né? A parte do “punk de protesto” Chico César reservou à letra. Lembre-se de que se trata de uma “canção em defesa da fé cristã”. Que, no entanto, já começa dizendo: “Bolsominions são demônios”. Só mesmo na Bíblia do Frei Betto é que talvez (talvez!) esteja escrito algo como “ame ao próximo como a ti mesmo – menos se ele votar em Bolsonaro”. E que tal, logo adiante, os versos desumanizantes que comparam os apoiadores de Bolsonaro a “vergonhas/ Que pastavam distraídas”?
Ao longo de seis minutos, Chico César tem tempo de dizer que os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro exibem uma “burrice imodesta” e que têm horror à “risada instruída”. Risada instruída é aquela que tem PhD? Aí a música continua com um verso escrito por uma criança de cinco aninhos fazendo birra no chão do shopping: “a bolsa de valores sem valores”.
O último verso é revelador porque expõe a crença esquerdista num Lula mítico que, hereticamente, há de nos salvar. Nele, Chico César diz que os cristãos que votam em Bolsonaro têm “o sangue de barata e a raiva/ De toda humanidade que não quer ser salva”.
Eu, porque quero ser salvo (não por Lula nem por nenhum outro político!), encerro aqui o texto. Acabou que nem deu tempo de falar sobre a versão que Adnet fez para "Mulheres", de Martinho da Vila, a música misógina que as feministas a-do-ram só porque o compositor é petista de quatro costados. Fica para uma próxima oportunidade.
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