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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Às vezes me pergunto se você está com razão (e com a razão)

Todos os dias, milhares de pessoas inteligentes dizem que vivemos tempos apocalípticos e que somos liderados pelo Anticristo. Será que elas têm razão? (Foto: Edvard Munch/ Domínio Público/ Wikipedia)

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Acordo muito cedo e, antes mesmo de sair da cama, começo a esboçar mentalmente o que escreverei. E o que tem acontecido com uma frequência incomum é pensar em responder ao desespero de algumas pessoas que me cercam e que vivem a arrancar os próprios cabelos diante da mais recente “fala polêmica” do presidente Jair Bolsonaro ou de alguma outra liderança da “extrema-direita conservadora, genocida, misógina, homofóbica e racista”.

Não é uma boa forma de começar o dia, reconheço. Porque me sinto ora um idiota-mas-querido panglossiano, ora um troiano que se nega a ouvir Cassandra. Não raro me surpreendo diante do espelho, o pincel de barba numa das mãos, olhando bem no fundo dos meus olhos pequenos demais e perguntando: será que você está com razão?

O “você”, no caso, são todas as pessoas que conheço, leio e admiro há anos, com as quais mantenho contato virtual e que diariamente me brindam com uma antevisão do inferno que insiste em me escapar. “Os campos de concentração já estão sendo construídos na Amazônia”, escreve um amigo carioca, companheiro de tantos chopes e risadas. “Vivemos uma tragédia ideológica”, diz alguém que conheço desde o tempo da Internet a vapor. “Nunca descemos tão baixo”, desespera-se outro com quem eu costumava falar de literatura policial. “Se você não é contra tudo isso que está aí é porque você é a favor, seu fascista!”, esbraveja um antes sereno companheiro das noites de pôquer.

É tanta veemência no desespero que não há como ignorar. É tanta certeza de que estamos passando por um momento crítico e fundamentalmente mau que me dá um frio na barriga. É tanta fúria em apontar na calma (e distração) alheia a falta de caráter e a pusilanimidade que sinto até o cheiro nauseabundo do meu espírito supostamente morto.

Ali no banheiro, a espuma de barbear escorrendo pelos dedos, me encaro com a severidade de um pai que exige do filho a mais completa honestidade. E, mais uma vez, me pergunto se você está com razão.

Primeiro porque sei que você é inteligente – e esses livros todos que você exibe orgulhoso na estante durante suas lives catastrofistas não me deixam mentir. Sei ainda que os conspiracionistas estão doidos e que você não recebe dinheiro nem do George Soros nem do PT para dizer o que diz. Aliás, ouso afirmar que não há dinheiro no mundo que pague nível tão alto de estresse. Dá para ver nos seus olhos fundos que seu pavor é muito real – e está cobrando o seu preço. Por extensão, sei que você acredita no próprio discurso e que de uma forma muito própria o pesadelo faz sentido para você.

Com a razão

A lógica disso, porém, me escapa. Eu a procuro nos fatos e não a encontro. Me sinto cego, burro, incapaz de conectar os pontos que levam ao abismo. Talvez a lógica esteja nas muitas declarações tortas, grosseiras e, francamente, estúpidas do presidente, dos ministros do STF, deputados e senadores. É isso? Mas são só palavras, em nada diferente do que tínhamos antes, quando ríamos das metáforas futebolísticas ou do vento que não se podia armazenar. Cogito também a possibilidade de seu medo ser fruto mais de um instinto de autopreservação. Sou capaz de respeitar isso, embora continue achando tudo muito desproporcional.

Na falta de uma linha de raciocínio muito clara, e sabendo que seu ímpeto revolucionário não é motivado por interesses mesquinhos, me pergunto também se você caminha na companhia da razão. Do contrário, o que o leva a insistir nessa fantasia macabra? Ah, é lindo o som dos aplausos. Sem falar que o custo social da honestidade intelectual talvez seja alto demais para você. Traduzindo, tolo é o boi que fica parado quando a manada corre em disparada.

Finalmente saio do transe diante do espelho. Faço a barba correndo, me corto todo, tomo banho e, antes de me pôr a escrever, dou uma olhada nas redes sociais, na esperança de encontrá-lo expressando alguma serenidade em seu cotidiano confortável de abundância e privilégio. Mas logo de cara me deparo com referências a Hitler e ao Anticristo. Diante do que só me resta esperar que você trave o bom combate e, contraditoriamente, encontre alguma paz em meio a esse conflito todo.

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