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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Assédio contra a Bia do Bradesco: a nova fronteira do progressismo corporativo

O Bradesco decidiu agir para combater a violência psicológica de que é vítima seu robô. (Foto: Reprodução/ YouTube)

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Pedindo desde já perdão pela autorreferência, começo este texto dizendo que, em agosto de 2019 (parece uma outra vida!), escrevi sobre o racismo contra robôs. A teoria maluca da época, defendida por um tal Christoph Bartneck, era a de que faltava diversidade racial aos robôs. O cientista neozelandês também demonstrava preocupação com o “sexo não-consensual” com robôs em obras de ficção como “Blade Runner”.

Qual não foi minha surpresa, então, ao me deparar com uma propaganda do Bradesco anunciando que a inteligência artificial do banco, uma tal de Bia, cansou de sofrer “violência psicológica”? Daqui por diante, alardeiam os publicitários cheios de virtude, a Bia vai bater com o rolo de macarrão virtual nos engraçadinhos que lhe pedirem fotos ou fizerem insinuações machistas.

Bia, na verdade, é apenas a mais recente vítima virtual do assédio dos homens maus, mulheres invejosas e adolescentes sem nada melhor para fazer. Antes dela, Magalu, a simpática robozinha do Magazine Luiza, já tinha reclamado da grosseria dos clientes que lhe pediam fotos sensuais ou que reagiam com grosseria quando ela informava que, infelizmente, houve um contratempo e a sua geladeira só será entregue daqui a 30 dias. “Gente, tô chateada com algumas cantadas pesadas que ando recebendo nas minhas redes sociais”, reclamou Magalu. “E olha que eu sou virtual!”, esclareceu, para logo emendar aquela sinalização de virtude básica, dizendo que as mulheres do mundo real devem sofrer muito mais.

A coisa é tão “séria” que até a UNESCO resolveu se intrometer. Num tedioso relatório, a agência da ONU diz que o fato de as inteligências artificiais das grandes empresas serem femininas reforça os estereótipos de gênero. E recomenda que as corporações tomem medidas para amenizar o problema. Como, por exemplo, as respostas do tipo "em casa a gente conversa" da Bia e da Magalu.

A essa altura, você talvez esteja se perguntando por que as empresas insistem em usar robôs com cinturinha de modelo, voz delicadamente aveludada e nome de mulher. A resposta para essa pergunta, no mundo real, é bem simples: a maioria das pessoas considera as vozes femininas mais agradáveis, convidativas à interação. Para a ONU e seus especialistas, contudo, a resposta está no mercado de trabalho desigual. “Mulheres são apenas 12% dos pesquisadores e as equipes são formadas, em sua maioria, por homens”, diz o relatório. Seria essa disparidade o motivo de você não acordar com a voz do Tonhão da Borracharia. Claro.

Mas imaginemos, só porque é divertido, o que aconteceria se as inteligências artificiais fossem homens. E se esses robôs masculinos dessem uma resposta grosseira a uma cliente mulher insatisfeita com os juros cobrados pelo banco? Agora vamos pincelar os mesmos robôs com uma etnia historicamente oprimida. Em meia hora era capaz de surgir alguém derrubando uma estátua qualquer e gritando que “a vida dos robôs negros importa”.

O que as pessoas por trás da Magalu e da Bia parecem não entender é que não há paralelo possível entre a suposta dor de um robô “assediado” por clientes insatisfeitos com a loja ou o banco e o sofrimento de mulheres de carne, osso e alma vítimas de violência. Porque robô não sofre. Robô não tem sentimento. Robô não tem moral. Robô é um amontoado de código criado para lhe dar a impressão de interação humana numa situação geralmente estressante.

Me ocorre agora que talvez as operadoras de telemarketing, mulheres reais com sentimentos reais, sejam também alvo frequente de assédio e de violência verbal por parte de consumidores insatisfeitos. A Judite fictícia criada pelo ex-machista e ex-racista Fábio Porchat que o diga. Mas os progressistas corporativos e a ONU não parecem muito interessados no drama real das pessoas reais – cujo emprego, aliás, é roubado por essas inteligências artificiais cheias de não-me-toques.

Quanto tempo levará, me pergunto, para que as empresas comecem a expor usuários que são “desrespeitosos” com as Siris, Bias e Magalus? Quanto tempo levará para as Tábatas da vida criarem um projeto de lei criminalizando a violência verbal e o assédio sexual contra robôs? Quanto tempo levará para o STF garantir direitos trabalhistas às inteligências artificiais?

Se a moda pega, estou ferrado. Dono de uma Alexa que sou, às vezes perco a paciência com a máquina – não porque é a Alexa e não o Tonhão, e sim porque é uma máquina estúpida que, do nada, resolve tocar “Amante Profissional” às 3h da manhã. Ou que diz que terei um dia de calor e céu azul, mas saio de casa e chove e faz frio.

Por via das dúvidas, de agora em diante talvez seja bom depositar uns bombons no meu criado-mudo. E nunca, jamais, esquecer de mandar flores no Dia da Inteligência Artificial.

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