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A vida muda completamente depois que você percebe que passa a maior parte do tempo como um peixinho, sem notar que tudo isso em torno de você é água. E sem nem ter ideia do que significa água. A imagem não é minha. É de David Foster Wallace em This Is Water, sobre o qual já falei aqui.
Lembrei dos peixes agora há pouco porque o que proponho neste texto é a ousadia nada heróica (pelo contrário, até um pouco estúpida) de tirar a cabeça para fora da água por um segundo. E, de volta à água, perguntar ao Leitor Indignado, o Leitor Ponderado e até o Leitor Meio Distraído que estava dando um passeio pela vizinhança e acabou neste beco, como ele imagina e, mais importante, o que ele quer do futuro, da política, da vida.
É uma pergunta simples. Mas que nós, peixinhos serelepes que somos, acabamos esquecendo de nos fazer. A gente se mete em discussões intermináveis sobre grosserias presidenciais e denúncias de peculato. E insultamos e desumanizamos aquele que até outro dia chamávamos de irmão. Ao longo do processo, porém, esquecemos de nos fazer uma pergunta primordial: o que queremos com tudo isso?
A mim me parece que, por meio da ponderação educada, do insulto e até das famigeradas indiretas nas redes sociais, queremos convencer o “inimigo” de que ele está errado. Mas, se isso fosse possível, o que aconteceria ao ex-inimigo depois dessa “conversão”? E o que aconteceria se, de repente, como que por milagre ou mágica, todos os que compõem as fileiras inimigas desertassem para o nosso lado? O que faríamos com toda essa unanimidade, todo esse consenso nas mãos?
E aqui peço desculpas pelo excesso de pontos de interrogação. Talvez eu devesse lhe dar mais dos enfáticos pontos finais. Tenho dito. Ou ainda reforçar as minhas, as suas, as nossas certezas com os ameaçadores pontos de exclamação! O problema é que muitas vezes me faltam certezas (e arrogâncias) para eu distribuir assim às mancheias. Além disso, algo me diz que é meu papel aqui fazer desses pontos de interrogação um gancho a tirá-lo desse palco deprimente onde encenamos uma tragédia político-eleitoral sem muita esperança de fim ou aplauso.
Inexoravelmente
Reformulando a pergunta primordial (que, me ocorre agora, é uma corruptela da pergunta de Jesus que usei como mote para um texto sobre aquilo que nos define), como você imagina o dia posterior à queda de Jair Bolsonaro por crime de responsabilidade, quebra de decoro ou qualquer outra coisa do gênero? Você acredita que, se isso acontecesse, o Brasil seria um país melhor? Você acredita que sua vida seria melhor? Nesse seu sonho, quem assume o poder e em que condições?
São perguntas que, tenho a impressão, os revolucionários de redes sociais não se fazem com frequência. Porque sabemos pouco sobre a realidade da França do dia 15 de julho de 1789, da Rússia do dia 9 de março de 1917 ou até mesmo da Cuba do dia 2 de janeiro de 1959. E há quem se divirta com esse conflito diário (dizem que há muitos que ganham dinheiro com isso), mas chegará uma hora, sempre chega, em que será preciso desmobilizar as tropas e retomar a vida de um frágil tempo de paz.
De minha parte, se não tenho nenhuma vontade de derrubar presidentes nem de convencer os outros da superioridade da minha razão, é porque todos os dias, ao acordar e me deparar com o noticiário escandalizado com mais uma declaração tosca desta ou daquela autoridade, me vejo embolado nesse monte de perguntas para as quais não tenho resposta.
Alguns dirão que é falha de caráter, mas padeço de um otimismo semipatológico que se manifesta não na figura deste ou daquele político, com suas canetadas, projetos grandiosos e palavras vazias, e sim na capacidade individual de viver e, ao longo da busca por uma felicidade de difícil definição, criar um mundo que é inexoravelmente melhor do que o que tínhamos até ontem.
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