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Ah, sim. Dessa eu me lembro bem. Foi publicada no dia 16 de setembro de 2024, se não me engano. Chovia e fazia frio. Na noite anterior, dois candidatos à Prefeitura de São Paulo, José Luiz Datena e Pablo Marçal, haviam se envolvido num episódio risível, mas que tratei com toda a pompa que meus leitores exigiam: no meio de um debate, Datena deu uma cadeirada em Marçal.
Claro que, na época, me passou pela cabeça fazer chacota do ocorrido. Talvez escrever que algum deputado do PSDB apresentou um projeto antiviolência política imediatamente apelidado de “Lei Maria Datena”. Ou contar a experiência de quase morte pela qual Marçal passou depois do ato terrorista. Ou ainda entrevistar a cadeira – que, se fosse nos anos 1990, àquela altura já teria sido anunciada como a nova capa da Playboy*.
O problema é que, se não me falha a memória falha (sic), os ânimos estavam exaltados e o mau humor reinava absoluto. Além disso, mais de uma vez ouvi o conselho de que jamais deveria contar com o bom senso do leitor. De modo que fiz exatamente o contrário do que me aconselhavam os cínicos: dobrei a aposta na ironia e escrevi, como o próprio título da crônica indicava, “uma análise séria da cadeirada de Datena em Pablo Marçal”.
Violência política
Taqui, ó. É isso mesmo. Começava assim: não se deixe levar pelo caráter meramente cômico do ocorrido. A cadeirada de Datena em Pablo Marçal terá consequências. E consequências graves. Não para os dois candidatos, que sabem muito bem como funciona esse circo. Estou falando de consequências para as eleições de 2026, que prometem ser as mais regradas da história de um país que até hoje não entendeu o que significa “liberdade” – e que é incapaz de compreender o caos da Internet. Se é que vai ter eleição...
Era uma análise séria (e um receio real) num texto cuja comicidade sutil estava no próprio fato de o autor ter se debruçado para pensar nas sequelas de um gesto tresloucado. Uma cadeirada que, num país verdadeiramente democrático e mentalmente sadio, entraria para o folclore político nacional – e estamos conversados. Mas que no Brasil de 2024, não. No Brasil de 2024, a cadeirada de Datena em Pablo Marçal me obrigou a perguntar: quem sai ganhando e por quê?
Tanto que você pode ver aqui nesta parte: nananã, nananã. (...) Achei! Datena não tinha nada a perder. Pablo Marçal, por outro lado, tinha tudo a ganhar. Não por acaso, pouco depois de receber alta do hospital (sim, ele foi para o hospital – e de ambulância) Marçal (sim, foi mesmo; juro!) posou de “mais uma vítima da violência política de esquerda”. E se fez notar como mártir ao lado do realmente esfaqueado Jair Bolsonaro e de Donald Trump, que só por milagre não levou um tiro na cabeça.
Alvo normal
Aí eu fazia uma observação importante, mas que na época passou despercebida porque, já disse, os leitores estavam para lá de irritados. Cada qual, “apegado a seus pretextos”. Dizia eu, mais para o fim do texto, que o episódio revelava o nível de corrosão do nosso processo eleitoral. Porque, abre aspas, imagina se fosse o contrário, fecha aspas. E esse exercício simples de imaginação, achei eu ao escrever, provava que a “direita” tinha se transformado, no imaginário coletivo, num alvo normal para uma cadeirada. Ou uma facada. Ou um tiro.
Abre aspas de novo. E é aí que mora o grande perigo do nosso tempo: a ideia de que alguns homens são tão detestáveis e defendem ideias tão absurdas e repugnantes que contra eles vale qualquer coisa, de apelidos jocosos à censura e violência física. Mesmo quando se trata de um evidente personagem brincando com as muitas falhas no Sistema. Fecha aspas. Nessa hora lembro que me deu vontade de apagar tudo e escrever a entrevista com a cadeira. Mas passou. Felizmente.
A análise séria continuou, na esperança de que alguém notasse o ridículo daquilo tudo. Na esperança de que alguém percebesse que a política tinha se transformado num espetáculo cuja qualidade dos roteiros, dos atores e até do público só diminui. E, se duvidar, era bem isso o que queriam as autoridades da época. Afinal, naquele Brasil de 2024 não era preciso ser muito criativo nem presciente para imaginar Barroso ou Alexandre de Moraes assistindo às cenas da cadeirada e pensando que, se os candidatos tivessem sido escolhidos por eles, nada disso estaria acontecendo.
Deu no que deu.
* Playboy, convém explicar para meus leitores mais jovens, era uma revista com ótimas entrevistas.