Estava prestes a começar a escrever um texto intitulado, sei lá, “O Campeonato Mundial da Virtude 2020 está pegando fogo”. A ideia era evocar o conceito de virtude em Sêneca e, tendo como referência o esquete do futebol de filósofos de Monty Python, emular a poesia da crônica esportiva de um Nelson Rodrigues (quem me dera!) para descrever a final da competição. Mas daí me deixei seduzir por uma sereia.
No caso, a Pequena Sereia, estátua de 107 anos instalada em Copenhagen em homenagem ao escritor Hans Christian Andersen. A estátua foi vandalizada com os dizeres “Peixe Racista” pichados em sua base de pedra. Em tempos normais, suporia que a pichação não passa de uma tentativa fracassada de fazer humor. Talvez um jovem dinamarquês tenha exagerado na cerveja e dito para o amigo: “Duvida que eu vá lá e faça isso?” E foi e fez.
Mas em tempos de luta antirracista e de pervertidos que criam “zonas autônomas” onde possam exibir suas supostas virtudes cheias de contradições (até a polícia acabar com a brincadeira), infelizmente tenho de trabalhar também com a hipótese de que o mesmo jovem dinamarquês bêbado tenha dito ao amigo: “Bebo porque sofro ao ver esse peixe racista todos os dias. Não aguento mais sofrer. Vou lá fazer com que o mundo inteiro conheça minha dor”.
Aí o texto original, que tinha Sêneca juiz da partida, foi ficando para trás. Se eu o escrevesse, porém, contaria como, logo nos primeiros cinco minutos de jogo, Sêneca causou revolta na torcida, dando origem a uma pancadaria generalizada, depois que o filósofo expulsou cinco jogadores de cada lado por conduta antidesportiva extrema e doping ético flagrante. Afinal, virtude que se arvora não é.
Jogador revelação
Senti que o texto estava me escapando por dois motivos. Primeiro porque a sereia não saía da minha cabeça. Minha bisavó já centenária acreditava piamente nelas e contava, em meio a seus tranquilos delírios senis, que avistou muitos desses seres mitológicos quando veio, ainda criança, morar no Brasil. Além disso, a sereia tem todo aquele seu aspecto macabro de tentação que leva o ser humano ao naufrágio e à morte certos.
Em segundo lugar porque, de repente, me vi paralisado diante do computador, assistindo à imagem grotesca de um homem de saias e seios (sim, seios!) à mostra, gritando contra os policiais de Nova York e dizendo que eles, os policiais, eram inferiores porque não frequentaram uma faculdade e eram incapazes de ler um livro de história. Como estabelecer qualquer diálogo com uma pessoa assim tão intoxicada de autoimportância e ideologia? Tão incapaz de se colocar na situação do outro e de vê-lo, apesar das diferenças de opinião, de estilo de vida e até de saúde mental, como um ser digno de respeito?
É. Não tem jeito. Se insistisse na ideia de escrever sobre aquela emocionante final do Campeonato Mundial de Virtudes, teria agora de encontrar uma forma de colocar não só o Sêneca para apitar a partida e a Greta Thunberg para dar o pontapé inicial; teria de encontrar uma forma também de escalar esse jogador revelação – o Guerreiro Anônimo das ruas de Nova York. Uma pessoa incapaz de se decidir sobre o próprio gênero, mas que, de alguma forma, foi levada a acreditar que sabe o que é melhor para todos os demais seres humanos. Que conhece o caminho que conduz ao Paraíso porque tem diploma universitário e talvez saiba ler um livro de história (a questão é: que livro?).
Teresão 2020
Como o texto original estava arruinado mesmo, desisti. O que é sempre uma decisão difícil, ainda mais depois de conseguir amealhar como patrocinadoras da competição todas as multinacionais comprometidas com a pauta progressista. Houve até uma reunião com os diretores de marketing dessas empresas para escolhermos o formato e o nome do troféu a ser dado ao campeão, de modo a não ofender ninguém.
Foram horas e mais horas de muita conversa, indignação, choro e ideias jogadas fora. Por fim, concordamos que o melhor formato do troféu era um graveto que o capitão da equipe vencedora receberia e jogaria para o alto, ao som de György Ligeti. Quanto ao nome do troféu, a decisão ainda não tinha sido tomada. A ala mais moderada dos publicitários propôs “Teresão 2020”, numa homenagem irônica a madre Teresa de Calcutá. Mas a ala mais radical não entendeu a ironia.
Com mais este texto natimorto na já transbordante cesta de lixo, todas essas coisas agora jazem no Grande Cemitério das Ideias. Antes de dar a semana por encerrada, contudo, vou até a janela e sou surpreendido por um foguetório. O que aconteceu? Será que a pandemia acabou? Finalmente vou conseguir tomar uma cerveja e comer frango a passarinho? Não. É que parece que o Trans FC marcou um gol – de mão e em impedimento – aos 46 minutos do segundo tempo contra o C. R. Feministas.
[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS