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Nada como mexer em livros velhos, encontrar as marcas de uma leitura anterior e descobrir que Shakespeare falou, sim, sobre o Brasil contemporâneo.
Nada como mexer em livros velhos, encontrar as marcas de uma leitura anterior e descobrir que Shakespeare falou, sim, sobre o Brasil contemporâneo.| Foto: Bigstock

Estava mexendo em uns livros velhos, aspirando uns ácaros pré-históricos e chafurdando naquela nostalgiazinha nada saudável, quando me deparei com uma edição de “O Rei Lear”, de Shakespeare, em tradução do velho, bom e saudoso Millôr Fernandes. O livro está todo rabiscado (à caneta, porque sou rebelde) e cheio de anotações às margens. Não entendo minha própria letra. Aqui e ali, tampouco entendo por que sublinhei essa ou aquela passagem.

Logo na segunda cena do primeiro ato, conversam Gloucester e Edmundo sobre os tempos pouco auspiciosos em que vivem. Diz Gloucester:

“Esses últimos eclipses do sol e da lua nada de bom nos anunciam; embora as leis da natureza possam explicá-los de diversos modos, a própria natureza é castigada pelos seus efeitos. O amor esfria, a amizade se rompe, os irmãos se dividem. Na cidade, revoltas, nos campos, discórdia; nos palácios, traição; e se arrebentam os laços entre pais e filhos. Esse vilão que criei caiu nessa maldição; é um filho contra o pai. O rei desvia-se das leis da natureza: e o pai contra a cria. Nós vimos o melhor de nosso tempo: perfídias, traições, imposturas e toda espécie de agitações funestas vão nos acompanhar sem descanso até a tumba. Revela esse canalha, Edmundo; não perderás por isso. Vai com cuidado. E Kent, nobre e leal, foi exilado. Seu crime foi a honestidade. É estranho”.

A peça foi escrita nos primeiros anos do século XVII. O que significa que, ao ler esse trecho marcado com dez pontos de exclamação à margem, minha nostalgiazinha nada saudável leva um tapa na cara. Tapa necessário, diga-se passagem. Porque cair na armadilha reacionária do “tudo era melhor antes” só não é pior do que se ver preso às amarras do “eu vivo tempos inéditos”. Reis vêm e vão, guerras são declaradas, acordos de paz são firmados. E a condição humana continua na mesma toada trágica, com um ou outro dia de comédia. E, nós, escravos de uma realidade incontrolável, ainda tentando contorná-la procurando culpados para mazelas que são da nossa própria lavra.

A resposta de Edmundo aos lamentos de Gloucester tem como ouvinte apenas o leitor/espectador. Antes que Edgar entre em cena, diz Edmundo ao que imagino ter sido uma plateia barulhenta e fedida no Globe Theatre:

“Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelo excesso de nossos próprios atos – culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres, como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por força da obediência a determinações dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável desculpa do homem devasso – responsabiliza uma estrela por sua devassidão. Meu pai se entendeu com minha mãe sob a Cauda do Dragão e vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto devo ser lascivo e perverso. Bah! [Por algum motivo, o Edmundo de Millôr Fernandes parece ser gaúcho]. Eu seria o que sou, mesmo que a estrela mais virginal do firmamento tivesse iluminado a minha bastardia (...)”.

Pelo que se vê, Shakespeare não era muito fã da astrologia. Mas ficar nessa interpretação seria comprar briga com leitores de horóscopo. Não vale a pena. Melhor entender que a busca humana por desculpas por seus atos de vilania é estratégia velha e nada tem a ver com a “guerra cultural” que se trava hoje. Nisso, aliás, eu e o Paulo de anos atrás ainda concordamos. É o que concluo depois de, com alguma dificuldade, ler o bilhete que cai de dentro do livro, no qual escrevi uma versão para essa fala de Edmundo aplicada ao Brasil atual.

“Eis a sublime estupidez do mundo: quando nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos Bolsonaro, Lula e até o Papa pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência econômica; escroques, ladrões e traidores por comando de Marx ou Mises; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações progressistas ou conservadoras; como se toda perversidade que há em nós fosse pura instigação política. É a admirável desculpa do homem devasso – responsabiliza o Estado, a sociedade, a democracia e o que mais tiver diante de si por sua devassidão. Meu pai acredita que perdeu o emprego porque era negro e vim ao mundo sob o governo de Lula; portanto devo ser antirracista e comunista. Bah! Eu seria o que sou, mesmo que o líder mais impoluto tivesse legitimado a minha bastardia (...)”.

Há dias assim (e, se eles se prolongarem e virarem meses e anos, procure um médico): você olha em volta e só é capaz de enxergar “perfídias, traições, imposturas e toda espécie de agitações funestas que vão nos acompanhar sem descanso até a tumba”. E sai logo encontrando no firmamento ou nas páginas de jornal culpados para o fogo e o sangue que o cercam. Para esses momentos, Shakespeare oferece, na voz do Duque de Albany e algumas páginas mais tarde, umas poucas palavras de consolo - também com a marcação de um leitor que é o mesmo, mas outro:

“Não sei se seus olhos veem bem ao redor;
É comum perder-se o bom por querer o melhor”.

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