Estou viciado em “Grand Tour”, a versão da Amazon para o icônico “Top Gear” britânico. Logo eu, que nunca gostei de carros, não gosto de carros e, se um dia vier a ter um carro, será uma Kombi. De qualquer forma, “Top Gear” não é uma série sobre carros. É uma série sobre a amizade, aquele desejo de fazer traquinagem que insiste em resistir à experiência e, por fim, sobre a relação afetiva das pessoas com essas máquinas.
Assistindo a um episódio semimelancólico sobre a decadência da Ford no Reino Unido, me lembrei de como tratamos a saída da montadora do Brasil. Houve quem atribuísse a estratégia, parte de uma reestruturação mundial, a ele, o culpado por tudo, Jair Bolsonaro. E falou-se no progressismo da Fundação Ford, “incondizente” com a onda conservadora que teria tomado conta do Brasil. Houve até um Zé Mané que escreveu sobre a tentativa do velho Ford de criar uma cidade utópica no meio da Amazônia.
Mas ninguém falou do aspecto humano e individual disso. De como o fim da Ford mexeu e mexe com as memórias das pessoas. Em parte porque o carro hoje em dia não tem mais o mesmo apelo das saudosas carroças pré-Collor. Ao menos eu não conheço pessoas apaixonadas por HB20 ou que tiveram um Ethios marcante em suas vidas. Em parte porque é mais difícil mergulhar na alma alheia mesmo.
Eu mesmo, que sempre nutri certa repulsa por carros e via com desconfiança aqueles meninos do colégio que se reuniam no recreio para lerem junto a revista Quatro Rodas, tenho cá minhas memórias, boas e más, associadas a alguns carros da Ford.
Vida e morte
Foi numa Belina caindo aos pedaços, por exemplo, que tentei dirigir pela primeira vez. Todos os meus primos já dirigiam. Um deles, de apenas 13 anos na época, era mestre em dar cavalos de pau nas ruas de terra vermelha de Umuarama, no interior do Paraná. O pobre-diabo aqui, contudo, não conseguia entender para que servia aquele negócio de marcha. Eu só viria a aprender a dirigir mesmo aos 21 anos.
Do Corcel, fabricado por aqui de 1968 a 1986, eu me lembro pouco. Mas meus pais sempre suspiram à menção do carro, porque ele representou um marco na vida do casal recém-chegado a Curitiba. O Corcel está ligado ao bom futuro que meus pais viam para si e para a família: a casinha na periferia, os eletrodomésticos, a despensa cheia, mesmo em tempos de hiperinflação, e até os filhos no colégio particular.
Tem ainda o Escort XR3 – sonho de consumo de toda uma geração, mas que acabou vitimando minha avó paterna ali na entrada de Joinville. E, por fim, tem o Del Rey, último carro da Ford a ocupar as garagens da família. Mesmo em sua versão mais luxuosa, o Del Rey era insuportavelmente brega.
Sendo o xodó do meu pai, o carro só saía da garagem em ocasiões especiais (casamentos, batizados, Dia das Mães, Dia de Esfregar o Sucesso na Cara do Cunhado Invejoso) e para viajar. Odeio o fato de ter passado mais tempo do que gostaria lavando, encerando e deixando aqueles pneus pretinhos. Mas adoro lembrar que, nas raras ocasiões em que meus pais usavam o Del Rey para me levar ao colégio, ah, eu me sentia um boyzinho de vila e quase entendia por que alguns amigos preferiam a Quatro Rodas à Superinteressante.
Eletrodoméstico sobre rodas
Hoje carro é só um eletrodoméstico sobre rodas. Nem mesmo os carros daquelas marcas míticas significam alguma coisa para os jovens e adultos (a não ser, talvez, a Tesla). Eles são um amontoado de aço e plástico que o levam daqui para lá e de lá para cá. Para os mais wokes, então, pior ainda. Para eles, carro é no máximo sinônimo de poluição, de combustíveis fósseis, de capitalismo opressor, de estética massificada, de ostentação vulgar.
A decadência dos produtos da indústria automobilística no imaginário popular e no inconsciente coletivo da espécie que sempre ambicionou chegar mais rápido ao seu destino é evidente. E é consequência de um movimento mais amplo, de desprezo pelas grandes conquistas humanas e por tudo aquilo que nossos antepassados suaram para criar a fim de nos legar um mundo de facilidades e confortos inimagináveis.
Não queria concluir o texto neste tom de nostalgia fúnebre, mas não se pode ter tudo na vida. Às vezes a única forma de recuperar alguma esperança (e aqui estou falando da esperança de habitar um mundo mais grato) é mesmo apelar para as memórias de todas as brincadeiras idiotas criadas para passar o tempo, todas as broncas por derramar sorvete no estofado novinho, todas as tardes de “banho no carro” ao som de Chitãozinho & Xororó. E todas as brigas com a minha irmã no banco de trás dos Voyages, Monzas, Chevettes, Fuscas e Fiats 147 da minha vida.
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