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Polzonoff

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Baixa cultura

“Casamento às Cegas” é mais repugnante (e fascinante) do que “Round 6”

"Casamento às Cegas" mostra como a geração bombada, tatuada e vazia de valores enxerga o amor e a possibilidade de constituir uma família. (Foto: Reprodução/ Netflix)

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Me perguntem se passei o final de semana assistindo a um Godardzinho ou um Kubrickzinho. Qual o quê! Se você chegou aqui lendo o título deste texto já deve ter percebido que passei minhas preciosas folgas de sábado e domingo assistindo a um reality show insuportavelmente ruim chamado “Casamento às Cegas”, disponível na Netflix.

Hesitei em escrever este texto. Não por causa do tema. Afinal, tenho uma longa história de análises “profundas” (muitas, muitas aspas, por favor) sobre reality shows. O texto se perdeu, mas me lembro de há 20 anos tirar conclusões shakespearianas a partir de uma participante gordinha de  “No Limite”. Depois vieram Casa dos Artistas e vários Big Brothers. E, sim. Sei que pode haver algo de profundamente errado com alguém que enxerga dostoievisquices nesses personagens. Mas também pode não haver.

Se hesitei em escrever este texto, portanto, foi por causa da reação de vocês, leitores. Afinal, sempre que escrevo sobre esse tipo de coisa as reações variam entre o “que perda de tempo!” e o “tá sem assunto?”, passando pelo “oh, como sou superior! Não perco meu tempo assistindo a essas porcarias”. E, tudo bem. Entendo que seja difícil aceitar que possa haver nesses programas algo que desperte o interesse pelo ser humano. Mas o que posso fazer se a visão de alguém abdicando voluntariamente de alguns valores que me são muito caros é ao mesmo tempo repugnante, assustadora e fascinante?

Veja o caso de “Casamento às Cegas”. A premissa do programa é produzir um relacionamento “puro” e “racional”, criando condições para que o flerte se dê apenas com base nas “ideias”. A partir daí, as pessoas unidas por esse “amor às cegas” deveriam rumar gloriosamente para um casamento feliz e duradouro. Meu fascínio algo mórbido começa por aí: a arrogância do planejamento e da razão aplicada a uma experiência que deveria ser de humildade e generosidade.

Aí vem a parte mais interessante do programa: os participantes. Não vou, aqui, esmiuçá-los muito. Nem precisa. Basta dizer que são homens e mulheres absolutamente perdidos na vida e que se submetem voluntariamente ao repugnante espetáculo do julgamento público. Novamente peço licença ao leitor mais casmurro para perguntar: como é possível que você não se interesse por seus semelhantes que buscam de forma tão atabalhoada essa tal de felicidade?

Sério. Vejo aquelas pessoas e só consigo sentir uma profunda pena. Tenho certeza de que todas elas têm uma história e uma justificativa para se submeterem a esse ritual deplorável. Uma história e justificativa que, no entanto, não nos são oferecidas pela produção do programa. Você pega, por exemplo, a mulher toda bombada, tatuada, siliconada e vazia que “se apaixonou” e agora sonha com um casamento judaico tradicional com alguém que visivelmente a olha com uma mistura perversa de luxúria e repulsa. Como, por Deus, alguém é capaz de se humilhar a esse ponto?

E tão importante quanto: em troca de quê? Foi-se o tempo em que as pessoas se submetiam a esses rituais de humilhação pública por dinheiro e pela oportunidade de posarem nuas para uma revista masculina. Tantos são os reality shows que me custa acreditar que uma pessoa participe disso em troca de uma fama cada vez mais efêmera. Será que elas acreditam mesmo na premissa absurda do programa? Será que é assim que toda uma geração vê o amor e os relacionamentos? Que atalhos e caminhos tortos essas pessoas pegaram ao longo da vida para acreditarem que esse tipo de coisa lhes trará a Felicidade?

Essas são algumas das muitas perguntas que tento responder assistindo a esse tipo de produto da baixa, baixíssima cultura. A mais importante delas, contudo, não tem nada a ver com o programa ou os seres que o habitam. É uma pergunta que, curiosamente, dialoga com a alta cultura que esporadicamente sou dado a consumir: para além da taxonomia, que insiste em dizer que somos todos Homo sapiens, o que me torna igual e diferente dessas pessoas?

Disse lá em cima, no título, que “Casamento às Cegas” consegue ser ainda mais repugnante do que a série “Round 6”, a que não assisti até o fim, tamanho o desprezo pela vida expresso na série coreana. Estou exagerando, mas não muito. Também no reality a vida e os conceitos amplos que em torno dela gravitam, como o amor, não valem absolutamente nada. As palavras não têm peso algum. Ideias muito simples, como o respeito e a solidariedade, são desconhecidas dessas pessoas que vivem para receber aplausos e mais aplausos, numa eterna e insaciável busca por aceitação.

E piora. Ah, se piora. Porque o programa tampouco está imune à politização do cotidiano e dos relacionamentos. E, a julgar pelo que se vê em “Casamento às Cegas”, rumamos para um futuro em que um mero jantarzinho romântico pode se transformar em conflito por causa de diferenças identitárias que até ontem nem existiam. Ou, se existiam, ninguém ligava para elas. Num mundo onde tudo é abundante, inclusive a ignorância, me parece que estamos condenados à assertividade rancorosa do feminismo e do racialismo ressentidos. Bom, enquanto não começarem a distribuir tiros nas nucas dos “privilegiados”, tudo bem.

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