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Andam me cobrando uma opinião sobre o caso Genivaldo, morto numa câmara de gás improvisada no camburão de um carro da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe. Me sinto levemente ultrajado. Afinal, este é um daqueles casos que não permitem ângulos inusitados ou grandes dribles literários. A hipótese de que sobre o assunto eu tenha qualquer opinião que não a óbvia é impensável.
A opinião óbvia, só para deixar bem claro, é a de que os policiais trataram um ser humano como se fosse um inseto digno de fumigador. O que os levou a agir assim eu não sei nem tenho vontade de especular. Cansa, e muito, fazer essas incursões imaginadas pela mente e coração alheios, a fim de encontrar sempre a mesma história de dor, amargura, ressentimento e crença na “educação pelo trauma”.
João Cabral de Melo Neto preferia “educação pela pedra”. Que seja. Digo que é pelo trauma para não ser acusado de plágio, mas a ideia é a mesma. Trata-se de uma estratégia gravada no coração e mente de pessoas que acreditam que apenas o sofrimento pode ensinar um valor positivo a alguém. Essa é a ideia contida em toda violência usada como corretivo. Incluindo, aí, a câmara de gás improvisada dos policiais que denigriram a reputação da corporação.
A imagem do camburão esfumaçado é a que está em voga no momento, mas vemos a educação pelo trauma praticada o tempo todo ao nosso redor. Do xingamento ao açoitamento em praça pública, do discurso cortante à hermenêutica corrompida do Judiciário, o objetivo da educação pelo trauma/pedra é humilhar e, assim, marcar no espírito do outro uma dor inesquecível que, em teoria, o impedirá de repetir o erro.
Os que defendem a educação pelo trauma, contudo, ignoram a incrível tenacidade da estupidez humana, que nunca viu, não vê nem jamais verá no trauma força de convencimento o bastante para fazer com que um homem mau se torne bom. A verdade é que os homens, sobretudo os homens maus, assimilam os traumas e seguem por essa vida ostentando os que lhes são úteis e descartando aqueles que consideram minimamente prejudiciais às boas imagens que têm de si.
Sinais
O que me causa ainda alguma estranheza é o fascínio e facilidade com que muita gente chafurda no mundo-cão. Em busca, suponho, da prova definitiva de que somos maus, irremediavelmente maus, e que por isso é necessária a criação de um sistema (geralmente utópico) para nos proteger dos indivíduos mais repugnantes da espécie. Tem gente que sente prazer em testemunhar tanta maldade – para assim talvez não se sentir tão sozinho.
Semana após semana, e não apenas nas páginas policiais, os sinais estão aí e parecem reforçar a incontornável conclusão niilista de que somos maus. Assassinato, estupro, guerra, conchavos, arbítrio, mentira, inveja e ódio nos cercam no noticiário, muitas vezes sem deixar espaço para qualquer tipo de esperança. Ora, como falar em esperança quando vemos policiais executando outro ser humano, num espetáculo grotesco filmado pelo onipresente Cinegrafista Covarde?
Os sinais de que somos maus são claros e abundantes. Eles estão nas pesquisas eleitorais, nas aspas das autoridades, nos movimentos do tabuleiro político, nos embates entre celebridades, na despersonificação do adversário, no julgamento sumário e na execução real e metafórica do inimigo. Estão nas caixas de comentários, nos grupos de WhatsApp, nas salas de reunião e até nas bocas dos personagens daquele série engraçadinha, cheia de personagens repugnantes, que você curte na noite fria e chuvosa “só para espairecer”.
Mas há sinais de que somos bons. Só que esses sinais exigem garimpo, quando não imaginação. Exigem até olhos com o super-poder de amplificar uma gentileza para além do banal, dando-lhe a dimensão que lhe é de direito: a de milagre. Exigem generosidade e cuidado. Afinal, quando nos deparamos com um sinal de bondade, sabemos que estamos diante de algo raro e frágil. São débeis, discretos mesmo, os sinais de que somos bons. E eles preferem sempre o silêncio ao grito, o sorrisinho que mal se nota à indignação vulgar.
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