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A única que obedeço

Censura! Minha mulher me proíbe de escrever sobre o STF

Pior é que ela tem certa razão. Brincar com o STF se tornou perigoso até mesmo para um lambarizinho como eu.
Pior é que ela tem certa razão. Brincar com o STF se tornou perigoso até mesmo para um lambarizinho como eu. (Foto: Bigstock)

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Domingo, minha mulher acordou sobressaltada. “Sonhei que você tinha sido preso”, disse, se empanturrando de waffle. Fiquei quieto, esperando pelo pior. Que não tardou. Pegando o celular, ela me mostrou as reações ao meu texto fictício sobre Caetano Veloso ter sido alvo de operação de busca e apreensão por propagar ideias antidemocráticas. “Olha só quanta gente acreditou. Apesar do asterisco!”, disse ela, me acusando de não sei bem o quê.

Pairou sobre a mesa o silêncio. Lá fora, os sinos da igreja disputavam meus ouvidos com uma maritaca. Mergulhado nessa cacofonia improvável, não percebi que minha mulher falava, riscando o ar com o dedo indicador. “Acho melhor você parar de escrever sobre o STF”, aconselhou ela, naquele tom que não dá margem a interpretações: era uma ordem.

Mesmo sabendo que era inútil, tentei argumentar. E, debilmente, disse que era só uma crônica. Para quê?! Ela se levantou e, andando de um lado para o outro com o celular na mão, foi citando todos os textos que já escrevi com críticas ao STF. Ainda tentei dizer que não tinha o que temer, porque nunca fui desrespeitoso. Mas não teve jeito. Estou proibido. Estou censurado.

O pior de tudo – o mais escandaloso! – é que ela tem certa dose de razão. No Brasil de 2021, usar o esse, o tê e o efe juntos, mesmo que num texto de humor, tornou-se inacreditavelmente perigoso. Mesmo para lambarizinhos como eu. Afinal, hoje em dia tudo o que há entre a minha liberdade (de ver a realidade pelo prisma intencionalmente ingênuo que defendo) e uma dor de cabeça kafkiana é a consciência de um ente político-jurídico: um ministro do Supremo.

Não basta ou não deveria bastar. Tanto é assim que, ao longo da história, criamos vários mecanismos para impedir justamente que a autoridade (às vezes um rei, um presidente, um ditador ou um juiz) use sua consciência (falha, pecaminosa) para perseguir o indivíduo. Mecanismos que, hoje, estão ou enferrujados ou foram pulverizados por anos e anos de corrupção moral daqueles que enchem a boca para falar “sou autoridade!”.

Crise do silêncio

Munido de uma ousadia que não combina comigo àquela hora do dia, levanto-me. “Tá pensando que vai aonde?!”, pergunta ela, e volto a me sentar. Me imagino todo nelsonrodrigueano, dizendo que não vou deixar de escrever sobre o STF coisa nenhuma. Afinal, sou um ex-covarde! Mas me amedronto e, reduzido à minha insignificância, fico ali folheando um livro cuja leitura interrompi há muitos e muitos meses. Nele, leio que “boas decisões surgem com a experiência, mas você só tem experiência se tomar decisões ruins”. Faz sentido.

Estou prestes a quebrar o gelo anunciando a ideia de escrever um texto sem as letras “s”, “t” e “f” quando ela bufa longamente, vidra uns olhos insuportavelmente profundos em mim e diz: “Já vi tudo. Você está pensando em escrever um texto inteiro sem as letras ‘s’, ‘t’ e ‘f’, né?”. Respondo que sim, mas que tinha empacado já na primeira frase. Ela reage com um tsc, tsc, tsc demorado. Como se deixasse claro que não tenho conserto mesmo.

“Quer saber de uma coisa?”, perguntou ela, perdendo a paciência. Sem saber se respondia ou não à pergunta retórica, simplesmente arqueei as sobrancelhas, num convite ao insulto. Que não veio. Pelo contrário. “Tava aqui pensando”, disse minha mulher. “A crise político-judiciária é sobretudo uma crise do silêncio”, afirmou. Diante da minha impassividade, contudo, ela teve de apelar novamente às ordens. “Tá esperando o quê? Pega uma caneta e anota o que estou dizendo!”, mandou.

“A. Crise. Política. É. Uma. Crise. Do. Silêncio”, escrevo com minha caligrafia insuportavelmente torta. “Sim”, diz ela. “E o pensamento individual, com base em princípios éticos, só nasce no recolhimento. Em silêncio. A cacofonia só beneficia o pensamento de grupo”, afirma, naquele momento ironicamente disputando espaço com as maritacas e os sinos da igreja. “O que explica muita coisa. Desde o sucesso das redes sociais até o apelo dessa discussão aí sobre um grupo de pessoas que deveria agir discretamente, em silêncio, de acordo apenas com seus valores e princípios. Mas que cedeu à tentação das multidões”, continuou ela.

Anotei tudinho. “Posso usar isso no texto de amanhã?”, pergunto. Ela faz que sim, como se não soubéssemos os dois que era o plano dela desde sempre. Sentindo-me mais à vontade no campo minado daquele café matinal, me arrisco a perguntar se a censura está revogada e se já posso voltar a escrever sobre o STF. “De jeito nenhum!”, diz ela.

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