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Nesta manhã ensolarada de terça-feira de não-carnaval, passeio pelo Museu dos Grandes Clichês da Literatura Brasileira e me deparo com ele, o chato – personagem imprescindível para qualquer um que queira ostentar um dia o epíteto de cronista. “Que chato?”, você pergunta, espero que não chateado. Aquele que todos somos em algum momento da vida. Agora, por exemplo. E aquele que incontáveis cronistas um dia ousaram definir e descrever - sem sucesso.
O chato cantado em versos dos quais nem ele lembra. Tem aquela do Zeca Pagodinho, diz ele, evocando o chato-mor da chatice etílica. E também aquela do... como é mesmo o nome da banda daquele chato? O chato tipificado em latim por Paulo Mendes Campos e vítima de meia dúzia de aforismos millorianos. O chato retratado por Nelson Rodrigues, que não se via no espelho da chatice.
Por que o chato nos fascina e incomoda tanto? O chato que fala perto demais, lançando perdigotos especialmente perigosos em época de pandemia, a gente até entende. Ou aquele que tem sempre uma citação na ponta da língua - argh. Que dizer do chato para o qual toda a realidade pode ser representada por um eixo x e um eixo y?
Já o chato cotidiano, o chato lúdico, o chato-várzea, o chato moleque, o chato-arte, ah, esse nos seduz com sua chatice cheia de mesóclises, outrossins, pontos-e-vírgulas e até « aspas francesas». Com suas histórias repetidas ad nauseam em argumentos ad hominem ad infinitum. E sobretudo com sua inquebrantável certeza de que os chatos são sempre os outros.
Convém notar que o chato é mister (chato que é chato escreve “é mister”) em se adaptar aos tempos. Não à toa, também ele, o chato, passou por uma profunda transformação nas últimas décadas. Antes o chato só se manifestava ao final das palestras, com uma pergunta chata qualquer, até arrematar com o infatigável: “Pode ler meus poemas?”. Hoje o chato fala a língua dos neologismos acadêmicos. E, se reclamar, saca logo da manga incrivelmente comprida a carta da chatofobia.
Me admira o chato confesso e escancarado, que chega nos lugares de pochete e camiseta regata branca, na qual se lê “Sou chato, e daí?”. Esse é o chato orgulhoso de sua condição revolucionária: o chato que abriu caminho pelas brechas da sociedade, deixou de ser palavrão e de ver sua imagem associada ao incômodo inseto (dizem) para virar influenciador sem seguidores. Nas redes sociais, repare, ele escreve sempre com o dedo em riste na nossa cara, o chato. E tem solução para tudo, menos para a própria chatice.
Uma vez elevado à condição de celebridade em sua bolha de chatos, lá vai o chato, pata aqui, pata acolá, dizer o que pensa sobre absolutamente tudo, principalmente sobre política, assunto que o chato já dominava antes mesmo de nascer. O chato sabe a data de todos os acontecimentos históricos, por mais irrelevantes que tenham sido.
O chato odeia e ama sem lógica, guiado por seus instintos mais básicos. Se lê uma poesia, já se considera intelectual. Guimarães Rosa então! Quando lhe perguntam como vai, o chato explica tintim por tintim, guiado pela certeza marxista de que a história retilínea é a responsável por suas misérias e parcas felicidades.
Sim, porque o chato nunca é feliz, embora muitas vezes abra aquele sorrisão que confundimos com alegria. A felicidade chateia profundamente o chato. Repare que o chato contemporâneo está sempre triste, decepcionado e saudoso daquilo que não viveu, mas não necessariamente cabisbaixo. Pelo contrário, ele bate no peito, cita Jordan Peterson e chama para o conflito. Ele acredita na ordem advinda do caos e organizada por cor na estante cheia de autores os mais chatos.
Característica importante do Chato 2.0: ele acredita que tudo é uma indireta para ele, inclusive e sobretudo textos que tentam definir e descrever o chato. As constelações que ele aponta no céu sem medo de criar berruga na ponta do dedo giram em torno de seu umbigo – que, explica o chato beeeem devagar, é uma cicatriz e às vezes a única forma de diferenciar gêmeos idênticos.
Por fim, dá-se o nome de chato a todos aqueles que, incapazes de encontrar uma saída honrada para um texto que bebe farta e explicitamente num lugar-comum, começam o último parágrafo com “por fim” e o encerram com um ponto final – mas não sem antes gastar mais meia dúzia de palavras só para fazer um suspensezinho a mais.