A galeria sob a rua não tem lojas nem nada. É só uma passagem que fede a urina, com um teatro e um clube de xadrez fechados por causa da pandemia e uns grafites horríveis com trocadilhos de Paulo Leminski. Pois, a fim de conter o surto de coronavírus em Curitiba, as autoridades acharam por bem fechar metade da grade que dá acesso à galeria Júlio Moreira.
Tenho dito desde o começo do ano que o coronavírus só virou peste porque vivemos uma crise de confiança sem precedentes. Se a OMS fosse confiável, se acreditássemos mesmo que Tedros & Cia. sabem o que estão fazendo, ficaríamos em casa quietinhos e usaríamos máscaras sem reclamar. Se os governos fossem dignos de confiança, ouviríamos que a pandemia é uma catástrofe ou uma gripezinha e agiríamos de acordo. Se os especialistas ouvidos pela imprensa tivessem de fato credibilidade, obedeceríamos às suas recomendações porque acreditaríamos que eles têm como objetivo apenas salvar vidas, e não uma pauta oculta qualquer.
Mas há seis meses, desde que o coronavírus começou a figurar na imprensa, tudo o que vemos são bravatas e hesitações e medidas exageradas e recuos e estudos que dizem uma coisa que é logo desdita por outros estudos. Os especialistas não se entendem. A OMS está perdida. Sem falar que há pessoas que perceberam na pandemia a oportunidade para uma revolução política qualquer. Incapaz de assumir que a Covid-19 é um grande de um mistério, a ciência preferiu apostar na própria aura de infalibilidade, despejando diariamente uma tonelada de estatísticas e dados que muitas vezes se contradizem.
Com base nisso, políticos agem. E, em nome da ciência, seguindo as recomendações da OMS e os conselhos de especialistas nos quais o cidadão comum simplesmente não confia, tomam medidas ridículas como fechar metade da entrada de uma passagem de pedestres ou proibir a venda de bebida alcoólica depois das 22 horas ou (a minha preferida) rodízio de CPF.
A intenção, veja só, é louvável: tranquilizar a população e impedir uma catástrofe. Mas são medidas tão aleatórias e sem qualquer base científica inteligível que acabam por agredir ele, o já tão combalido bom-senso. Que, às vezes, cede a essas agressões flagrantes e reage por meio de um ceticismo até insano. É dessa terra e desse estrume que florescem coisas como o terraplanismo.
Aquela parte em que o leitor acha que estou defendendo o terraplanismo
O terraplanismo surgiu como uma mistura de piada e teoria da conspiração que reunia egressos da causa antimanicomial. Mas convenhamos: a teoria de que a Terra é um disco plano cercado por uma parede de gelo fortemente protegida pela Marinha dos Estados Unidos e de que todo o mundo científico estava mancomunado com a NASA para fazer com que nós, pobres coitados, acreditássemos na esfericidade do planeta tinha lá seu encanto. Impossível se deparar com um louco vestido de Napoleão e desviar o olhar.
Aos poucos, contudo, e principalmente depois dos sucessivos tiros no pé do até então infalível e inquestionável método científico, depois de tantas teorias tidas como fato e de tantas condicionantes (“pode”, “talvez”) nas manchetes, o terraplanismo passou por uma metamorfose sutil. Ele deixou de ser terreno exclusivo da loucura e virou uma postura assim meio debochada, ou melhor, muito debochada diante de uma ciência que viu seus laboratórios, antes cheios da objetividade transparente dos tubos de ensaio, serem contaminados pela opacidade da ideologia.
Claro que o conteúdo do terraplanismo é uma bobagem. Mas a roupagem da narrativa tem lá um quê de fascinante: ela denuncia os absurdos da ciência ideologizada propondo uma teoria igualmente absurda e obriga os cientistas a “voltarem aos tubos de ensaio” e defenderem um fato muito concreto, palpável e supostamente imune à visão ideológica: o de que a Terra é uma esfera (eu sei que não é exatamente uma esfera, e sim um geoide).
O que me leva a imaginar o que de melhor teria acontecido se nos mostrássemos “mais terraplanistas” – e há mais tempo. Será que teríamos nos deixado levar pelas recomendações hesitantes, perdidas e até contraditórias da OMS? Teríamos cedido ao pânico dos modelos matemáticos alarmistas? Teríamos aceitado medidas autoritárias de eficácia questionável e custo altíssimo tomadas por burocratas inaptos? Porque boa parte dessa confusão toda se deve, em parte, à arrogância de quem é incapaz de assumir que, sobre o coronavírus, o que se sabe até agora (três meses e meio depois de decretada a pandemia) é muito pouco.
A conclusão que, espero, me redima
Mas, de lá para cá, uma coisa parece ter ficado clara: qualquer medida que interfira na vida das pessoas e que seja tomada com base no achismo semiesclarecido de tecnocratas só contribui para que a ciência caia no descrédito e seja vista, sobretudo pelos leigos, como uma espécie de superstição metida a besta, de jaleco e diploma na parede, mas ainda assim superstição.
(Em tempo: um estudo publicado por especialistas de 300 países na revista científica Professor Pardal sugere que talvez quem sabe 34,56% dos leitores deste texto podem ou não insistir que o autor está defendendo o terraplanismo).
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