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Eu o entendo, leitor. Não é mesmo fácil manter a sanidade, quanto mais o otimismo, a coragem, a altivez do espírito e até a dignidade nesses tempos de pandemia que virou peste. A guerra não é declarada, mas ela existe. Paira no ar. Você não ouve bombas explodindo, mas assim que acorda e sente o ar deliciosamente gelado das manhãs entrar nos pulmões, lembra que está cercado pelo desespero, pela covardia, pela mentira. Bem-vindo à Grande Crise do Coronavírus.
Anime-se! Hoje é só mais um dia de isolamento, incerteza e pânico. Você vai abrir os portais de notícias e as redes sociais, quando não os aplicativos de mensagens instantâneas pelos quais se comunica com seus colegas de trabalho e familiares, e se deparará com brigas, mesquinhez, interesses pequenos e até xingamentos evocando uma versão muito particular de caridade. E terá de agradecer por tudo isso. Porque você está vivo.
Nas últimas semanas, tenho feito um esforço enorme, descomunal mesmo, para manter a cabeça fora d´água neste oceano de delírio fatalista. Abaixo de mim, nas águas turvas, sinto que um pequeno exército de tritões e sereias faz de tudo para me afogar. Os tritões me espetam com o cinismo dos que há muito desistiram de encontrar o sentido para a vida e de se regozijar nele. As sereias são todas elas cheias de enfado, arrastando aquela cauda gorda no lodo de arrogância e insegurança.
Me serve como boia (nunca arma!) nessa luta que eu preferia que fosse mais limpa a frase de Sêneca: “o desastre é a oportunidade da virtude" – ainda que as virtudes tenham se transformado em bibelôs do espírito a serem exibidos nas redes sociais. E o Livro de Jó, com sua estranha promessa de redenção. E o Eclesiastes, para quem tem coragem de se olhar no espelho e reconhecer que tudo é vaidade, inclusive este texto.
Posso ser acusado de viver à base de uma esperança falsa, recitando frases óbvias de filósofos que há muito voltaram ao pó. Pode ser. A diferença, creio, está justamente entre aqueles que acreditam em alguma forma de manutenção da vida (podem chamar de ressurreição mesmo) e os que morreram há muito tempo e estão mais do que à vontade com a morte, largados na Eternidade, se empanturrando de cérebros e cercados por seus amiguinhos também zumbis. A diferença está entre os que almejam o amanhã para saber mais e os que acordam já sabendo tudo.
A curiosidade, isto é, o se reconhecer ignorante, mas capaz de aprender, é não só uma das manifestações dessa vida com vê maiúsculo, mas também uma das manifestações de Deus – desde que essa curiosidade não esteja corrompida pela tentação de se igualar a Deus. “Você não é só o que já sabe. Você é também é o que poderia saber, se ao menos tivesse tentado. Portanto, você jamais deveria sacrificar o que poderia ser em nome do que você é. Você jamais deveria abdicar do melhor que reside em você em nome da segurança que já tem – ainda mais sendo que você já vislumbrou algo além disso”, escreve Jordan Peterson. E como escreve!
A relação disso tudo com a Grande Crise do Coronavírus (circa 2020) é, para mim, muito clara: muitos de nós cedemos ao cinismo dos tritões e ao enfado das sereias, e nos submetemos ao jugo dos zumbis sabichões orgulhosos de comerem da Árvore da Vida. É compreensível, mas também deplorável. Afinal, ressuscitar cotidianamente dá trabalho. Enfrentar de peito aberto as provações de Jó dá trabalho. Aceitar o pó como o destino comum apontado por Salomão dá trabalho. Muito mais cômodo, pois, é se deixar morrer bem devagarinho. Melhor ainda se houver alguém para culpar depois.
Triste? Desalentado? Longe disso! Se me permito um momento de tristeza e desalento é justamente porque sei que amanhã renasceremos outros e os mesmos. Afinal, a melhor esperança é essa que surge depois de um dia de derrota.