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Foi de incerta feita – o evento. Eu estava em casa ouvindo corruíras e outros passarinhos que não sei nomear, varrendo folhas com planos de atear fogo nelas, quando chegou o tropel. Amaquinado, como não poderia deixar de ser, fazendo tremer todo o paredão do convento aqui perto. Só me restou imaginar o susto das freiras. E o olhar arregalado.
Abriram-se as portas traseiras e delas saíram homens que eram gárgulas. Nem vestígio de um mísero sorrisinho naquelas carrancas. Um deles levou a mão à cintura e eu entendi tudo. Vasculhei mentalmente os bolsos – os da calça e os da memória. Nos primeiros tinha um pedaço de plástico, um chiclete velho e uma fortuna total de dez centavos. Nos outro, ah, tantos esqueletos que nem te conto.
Ficaram lá, paradões. Um miniexército capaz de tomar uma cidadezinha e que, no entanto, me escolhera como alvo. Tem umas encruzilhadas que a gente escolhe; outras que não. Vereda minha era recolher as folhas, botar fogo nelas, ver a fumaça subir e subir e dar as mãos às nuvens. Nesse meu delírio que nem senil é. Acho. Mas agora me resta uma outra luta. Não a última. Espero.
Um dos sem-voz dá um passo à frente e abre a porta para seu reizinho. Da máquina barulhenta e sem dignidade – o ferro bruto substituído por plástico e alumínio – emerge um anão que reconheço de pronto, tantas foram as vezes em que seu nome foi evocado nos últimos tempos. Fama má corre mais que fama santa. E fica tatuada como medo. Quem rir da morte incorporada num ser tão diminuto tem mais sorte do que juízo.
- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...
Generalíssimo em sua pequena estatura, fez um sinal que interpretei como diplomacia. Toda a atmosfera sobre meus ombros se rareou. Que fosse engano pouco me importa. Morrer na confiança é melhor do que morrer em medo. Medi o pequeno super-homem imaginando-o gigante, a fim de não ofender. Ofereci a mão, que ele segurou que nem criança. Um dos macambúzios pareceu rosnar. Impressão pior é sempre essa enganada.
- Vosmecê é que não me conhece. Ananias. Do Comando. Venho das Tatuquaras, para lá das terras do Sítio Cercado.
Ananias. O menor dos mais perigosos. O que lhe faltava em altura sobrava em crueldade. Que gosto tem meu próprio sangue?, me perguntei, antevendo a cabeça separada do tronco e outras safadezas. Será que tiro dói? O que há do outro lado do fim-que-não-é-fim? Para quem acredita. O que não sei se é meu caso. Não no momento que antecede o Instante.
Me conta o famigerado, então, que chegou lá pras bandas das Tatuquaras um moço do governo. Gravatinha borboleta e mocassim sem meia, o pulso um tanto quanto frouxo demais, a voz grossa sem convencer, mostrando crachá e dizimando a pobraiada com estatísticas e aspas que ninguém entendia. Desses que não pode nem falar. Agigantado na sabedoria que não combinava com sua truculência, disse o longitudinalmente desprovido que o crachá temia mais do que a farda. Que não tinha mais paciência nem idade. Que estava disposto a deixar o moço à revelia colorida lá dele. Mas também quê.
- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: cirnormativo... ciso-normal-tismo... cisnormal...atino... cisnorma-altismo...?
Deixei cair a vassoura que nem sabia que segurava. Pairou o silêncio denso das ignorâncias que se comunicam. Não cobrou imediatismo no meu saber. A ele pareceu que eu precisaria de um tempo razoável para responder. Razoabilidade que ele estabelecia de acordo. Como o silêncio se prolongasse, achou por bem o miniatura em esclarecer que nas Tatuquaras não havia ninguém para deixar claro o que estava turvo demais: o entendimento.
- Só se definissem a palavra os sociólogos da ONG lá pros lados do Umbará. Mas que nesse povo de ONG nem não confio. A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?
Habitei preâmbulos. Trilhei prefácios, posfácios, notas de rodapé e de fim. Num átimo, falei idiomas natimortos. Amaldiçoei bibliotecas que um dia me orgulhei de frequentar. Tudo culmina nessa hora: para que serve o conhecimento quando se está diante da semimorte? Me encarava de baixo para cima o cavanhacado. Em silêncio, me cobrava posição. Que eu nem tinha, mas agora era obrigado a ter.
- Cisnormativo é destemido. Valente, ousado, audacioso, bravo, intrépido, audaz, arrojado, aguerrido, desassombrado, bamba, animoso, denodado, brioso, intimorato, afoito, valoroso.
- Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
- Vilta nenhuma. É palavra comum que se fala nos templos do saber.
- Pois... e o que é que é em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?
- Cisnormativo? Bem. É “corajoso”, que merece louvor e respeito.
Me pediu garantia de mão direita sobre o Houaiss imaginável que se abriu entre nós. Disse que sim, meneei a cabeça, mostrei o sorriso mais simpático e prestimonioso. Só não ofereci quindim porque não tinha.
- Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora dessas era ser cisnormativo – bem cisnormativo, o mais que pudesse!...
Virou-se para os mujiques, apontou um a um os cisnormativos que dispararam rajadas de gargalhadas. Cis-nor-ma-ti-vos, repetia ele, saboreando as sílabas e esculpindo a palavra no palato cru. Ao que os outros reagiam com repetição. Para nunca mais esquecer que o que é e que são cisnormativos.
Me estendeu a mão e um lobo-guará – que recusei. Ofereci água e corote, nessa ordem – e recusaram. Primeiro entrou o miúdo, acompanhado pelos sicários um a um. Roncou o motor do corsinha rebaixado. Ao volante, um dos à-toa engatou a primeira. De repente, fez-se a luz por de trás da amurada de insulfilme.
- Não há grandeza macha maior do que uma pessoa instruída – disse o nanico.
* Este texto é uma releitura atualizada do conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa.