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Polzonoff

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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Sangue nas mãos do STF

Quem matou Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão?

Cleriston
A morte de Cleriston Pereira da Cunha é mais do que uma tragédia com contornos de sadismo alexandrino: é a prova de que, no Brasil, a vida não vale nada. (Foto: Reprodução/ Facebook)

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Acordo esperando encontrar estampada em todos os jornais a comoção: morreu um homem. Um homem qualquer e comum. Um pai de família que ganhava a vida cuidando de uma lojinha. Um homem que talvez não entendesse muito bem como funciona essa democracia de araque criada pelo STF/TSE (alguém entende?). Um homem que não queria que um ex-presidiário governasse a sua vida e a vida dos seus. Um homem que acreditou nas balelas de 72 horas, bala de prata, tic-tac. Um homem que, no furor de se fazer ouvido e de ver retificada o que ele considerava uma injustiça, foi se manifestar diante de um quartel. Um homem que acreditou quando lhe disseram que ele era livre para protestar. Um homem que acreditou na perfídia das Forças Armadas. Um homem que passou dez meses preso preventivamente, como se fosse o facínora que evidentemente não era. Um homem com problemas de saúde. Um homem que a própria Procuradoria Geral da República, que em tese representa os interesses persecutórios do Estado, não estava interessada em perseguir. Um homem cujo pedido de liberdade foi solenemente ignorado por um juizeco sádico, um herói-de-si-mesmo que se lançou numa patética cruzada ditatorial em defesa do Estado Democrático de Direito – veja só. Um homem chamado Cleriston Pereira da Cunha. Um homem apelidado de Clezão.

Nada

Acordei, procurei – mas não encontrei. Assim como não encontrei nenhuma organização de defesa dos direitos humanos convocando manifestações pela morte do Clezão. Partidos, MBLs e quetais? Faz-me rir! Tampouco encontrei artistas compondo músicas de protesto pela morte do Cleriston. Vai ver ainda estão à procura de uma boa rima. Dos deputados e senadores de oposição ouvi alguma grita, é absurdo, é inaceitável, é estarrecedor, e biriri e bororó; mas ação que é bom... nada. Por falar em nada, nada ouvi do boquirroto ministro Flávio Dino. Muito menos do ministro e omisso extraordinaire Silvio Almeida – aquele por cujo ministério a Dama do Tráfico desfilou com sua causa supostamente (e bota supostamente nisso!) antitortura. Nem mesmo aquele ex-presidiário sempre dado a fazer política sobre caixões aproveitou a deixa. E de onde nada se espera é que não sai nada mesmo: o Supremo Tribunal Federal não serviu nem para soltar uma notinha daquelas bem cínicas dizendo que lamenta, que está apurando as responsabilidades e que segue comprometido com a defesa do Estado Democrático de Direito. Aquela ladainha de canalhices que conhecemos tão bem. Nada.

Queria

O que me obriga a reconhecer que vivo num país bem distante daquele em que queria viver. Talvez seja pedir muito, não sei, mas queria viver num país onde as pessoas de fato se importassem com a vida de uma pessoa, por mais que discordassem dela e do candidato no qual essa pessoa, esse homem, estou falando do Clezão, do Cleriston Pereira da Cunha, vota. Um país que saísse às ruas para exigir justiça – se bem que... exigir de quem?! Um país onde artistas oh-tão-politizados e cheios de consciência social não tivessem trocado a alma pela aceitação da patota e o sucesso chinfrim. Um país onde políticos tivessem um mínimo de honra e não se contentassem em dizer que a morte de um homem comum nas mãos de um Estado que já perdeu qualquer resquício de sanidade é um absurdo, lamentável, estarrecedor, e biriri e bororó. Um país onde os dez meses de prisão preventiva pelo “crime” de estar no lugar errado, na hora errada e com umas ideias erradas fossem chamados pelo que são: tortura. Um país onde a morte de um homem preso sem o devido processo legal também fosse chamada pelo que é: assassinato. Um país onde os algozes desse homem tivessem no mínimo medo de sofrerem as consequências por seus malfeitos. É pedir muito? Um país onde essa gente pequena, medíocre, insegura e covarde jamais tivesse a chance de governar, muito menos de mandar um homem comum, pai de família e doente para morrer na cadeia depois de ser traído pelas Forças Armadas, de ser ludibriado pela turma do tic-tac e de se deixar seduzir por ideias cada vez mais inatingíveis de liberdade e (olha ela aí de novo!) democracia. Um país onde não houvesse sempre justificativas para se soltar os bandidos de estimação e oportunidades para se prender os inimigos de ocasião. Um país que não considerassem dignos das inúmeras proteções legais apenas os amigos de seus muitos reis absolutos. Um país onde a vida do homem comum valesse alguma coisa, qualquer coisa - por mais que esse homem comum não concordasse comigo.

Em vez disso

Em vez disso, vivo no Brasil. O Brasil da imprensa apalermada. O Brasil da democracia de araque. O Brasil que já não combina com a música do Ary Barroso. O Brasil ressentido, amargurado e principalmente vingativo. O Brasil governado por um ex-presidiário. Ou melhor, egresso do sistema. O Brasil das Forças Armadas e seus muitos batalhões de pintores de meio-fio. O Brasil do flagrante perpétuo. O Brasil dos juízes sem nenhum compromisso com a Justiça. O Brasil dos advogados divididos entre a omissão e o ativismo. O Brasil dos deputags e seus pen-drives. O Brasil da democracia pujante, né, Mourão? O Brasil que insiste em perguntar quem matou Marielle, mas que não está nem aí pro Clezão. O Brasil de Felipe Neto. O Brasil dos CPXs. O Brasil das notas de repúdio e das cartinhas em defesa da democracia. O Brasil onde o Estado Democrático de Direito é destruído em defesa do Estado Democrático de Direito. O Brasil de Rodrigo Pacheco. O Brasil dos intermináveis biriris e bororós. O Brasil da impunidade epidêmica. O Brasil onde a vida, seja ela A de um feto, de uma criança, de um jovem, de um adulto, de um idoso, de um rico, de um pobre, de um branco, de um negro, de um petista ou de um bolsonarista não vale nada. O Brasil que, apesar de assim mais-que-imperfeito, também era o lar e o cárcere metafórico (e infelizmente real) de Cleriston Pereira da Cunha. E não é mais.

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