Dia das Mulheres: invenção burguesa criada para incrementar a venda de flores, chocolates e ansiolíticos.| Foto: Bigstock
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Meu dia ontem (8) começou mal. Acordei, fui nadar, voltei para casa e encontrei a mulher* emburrada à mesa. Abri aquele sorrisão cafajeste que ela tanto adora e exibi todo orgulhoso o saco de pão. Mas não era a fome o que tinha deixado minha mulher de mau humor, e sim o fato de eu não ter lembrado que era Dia Internacional da Mulher. Mas calma. Continue lendo que só piora.

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O fato é que eu tinha me esquecido completamente desse que é o dia mais importante de todo o calendário. Ao perceber o tamanho do estrago que meu lapso havia causado, fui até o armário, peguei uma lata de milho em conserva, abri, joguei uns grãos de milho no chão e me ajoelhei. Juntei as mãos em súplica e, porque considero pedir perdão mais grave do que pedir meras desculpas, roguei que ela me perdoasse.

Para minha surpresa, contudo, à medida que as sílabas de perdão escapavam da minha boca, minha mulher foi ficando mais e mais vermelha. Seus lábios se contraíram numa careta de ira incontrolável. Aqui em casa esse gesto é historicamente chamado de “a boquinha do ódio”. O fenômeno antecede um período de 10h a 12h durante as quais qualquer argumento de minha parte será recebido com uma saraivada de acusações desconexas que culminarão com a sentença de prisão imediata no gulag do coração dela.

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Olhei para baixo e só então entendi o que havia acontecido. Minha penitência simbólica no milho em conserva havia causado um lamaçal de salmoura, amido e aquela casquinha que fica no meio do dente, sabe? Deve ter uma palavra em alemão para expressar o medo decorrente dessa minha estupidez bem-intencionada. Mas estupidez. Mas bem-intencionada. Tentei emendar e dizer que pode deixar, eu limpo tudo, sim, sim, até com a língua! Mas não adiantou. Aparentemente sou burro demais para saber usar um pano, água e sabão.

Enquanto ela limpava o chão, ao som do funk proibidão “tá pensando que eu sou tua empregada?!”, fiquei bem quietinho no meu canto. Esperei que ela terminasse para elogiar o trabalho, mas o elogio entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Então retomei o ritual de expiação. Me ajoelhei no seco mesmo, juntei as mãos em súplica, pedi perdão e aproveitei para emendar um “Feliz Dia das Mulheres, meu amor”.

Pra quê! Ela jogou a esponja em mim, talvez na esperança de me derrubar ou de me dar um galo daqueles de desenho animado na testa, e foi logo emendando que, primeiro, não se trata de um dia de comemoração. “Então é melhor você ir tirando esse sorrisinho da cara”, disse ela, confundindo minha expressão de pavor com a de deboche (são parecidas mesmo). Estúpida e masculamente achei que era uma boa hora para perguntar se então eu deveria mandar a empresa de telegrama cantado cancelar a homenagem que tinha preparado para ela (era blefe).

Ao que ela respondeu com impropérios nunca dantes ouvidos em idioma cristão. Pisando tão forte que seus passos devem ter sido registrados por algum sismógrafo, ela saiu bufando, entrou no escritório e de lá saiu cinco minutos mais tarde com um livro nas mãos. Era a biografia da Cármen Miranda e não tinha nada a ver com a nossa briga. De dedo em riste, como se dele emanasse um raio laser capaz de me dividir em mil pedacinhos, ela me ensinou que o Dia das Mulheres era uma invenção burguesa criada para incrementar a venda de flores, chocolates e ansiolíticos, e que o correto é “Dia Internacional da Luta das Mulheres”.

Por um instante suicida pensei em fazer alguma piadinha com um ringue de mulheres, mas logo fui tomado por algo remotamente parecido com o bom senso e fiquei quieto. O silêncio que se abateu sobre a gente parecia ter trazido à Terra anjos de paz. Coincidentemente, esses anjos a acalmaram bem na hora em que tirei uma caixinha preta aveludada do bolso. “A invenção burguesa também foi criada para aumentar a venda de joias”, disse. Rosnando, ela pôs o anel no dedo.

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Uma vez restabelecida a harmonia doméstica, perguntei a ela o que eu poderia fazer para me redimir de todos os erros da última meia hora. Chorandinho, ela reclamou que eu nunca tinha escrito um texto para ela. “Mentira!”, pensei em exclamar. Afinal, todos os textos que escrevo são para ela, mesmo os que não falam dela. Mas àquela altura acho que tinha aprendido a lição. Ela enxugou uma lágrima falsa que escorria mexicanamente por seu rosto e me vi obrigado a prometer que escreveria um texto sobre ela. Este que você tem em mãos.

* “A mulher” é uma mulher fictícia. Nada do que foi escrito aqui tem relação com a minha mulher na realidade. Pelo menos foi isso que ela me mandou esclarecer nesta nota de rodapé.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]