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Não vai. Mas isso não é necessariamente uma má notícia. Não vai porque, antes de mais nada, essa coisa de Civilização Ocidental é apenas uma abstração que criamos para tentar entender como chegamos até aqui. E, sejamos sinceros, para nos orgulhar de nossos feitos, da Ilíada e Odisseia (fontes nas quais "Top Gun: Maverick" bebe às fartas) até a bomba atômica. Não vai porque, em segundo lugar, de onde surgiu essa ideia de que a Civilização Ocidental precisa ser salva?
Em terceiro e último lugar, Tom Cruise não vai salvar a Civilização Ocidental porque é justamente esse tipo de mentalidade que dá origem a tiranos de todas as matizes e tendências. George Soros se acredita salvador da Civilização Ocidental. Bill Gates, idem. Se duvidar, até a Anitta e Alexandre de Moraes se veem como salvadores de uma lasquinha da Civilização Ocidental.
Não. Com “Top Gun: Maverick” e sua (abre aspas bem grandonas e engraçadas) injeção de masculinidade tóxica (fecha aspas bem grandonas), Tom Cruise não vai salvar a Civilização Ocidental. Mas pode salvar seu dia, como salvou o meu domingo. Não sem antes me dar um sustinho. É que, antes de o filme começar, eu e a sala lotada fomos expostos a uma propaganda da ONU que dizia que estamos próximos da extinção. O que só prova que meu segundo parágrafo está certo, muito certo, certíssimo.
De volta ao filme. “Top Gun: Maverick” é uma lufada de esperança para aqueles que de vez em quando se desesperam com o andar da carruagem. Não por apelar à nostalgia, embora entre os quarentões paire mesmo aquela sensação de “ah, antes as coisas eram tão melhores e tão mais simples”. E não eram?! A esperança está na evocação de valores milenares para contar uma história que é tão antiga quanto a própria... Civilização Ocidental.
E, a julgar pela reação da plateia, a multidão anseia por heroísmo, amizade, honra, dever cumprido e fé – mesmo que nenhuma dessas coisas sejam explicitamente mencionadas no filme. E precisa? Aliás, melhor que não sejam mesmo. Do contrário, “Top Gun: Maverick” não seria uma aventura, e sim um panfleto. E acho que já deu para perceber que todo mundo está porraqui de panfletos à direita ou à esquerda.
Soterrados pela realidade hostil do cotidiano, os espectadores que vão ao cinema para ver “Top Gun: Maverick” só querem sonhar. E aqui é importante destacar que não estamos falando de uma animação nem de um filme de super-herói – dois gêneros que tem seus bons momentos, mas cujo monopólio narrativo nas últimas décadas impediu que o ser humano se reconhecesse no sonho em movimento do cinema. Faz uma diferença enorme ver o bem de carne e osso triunfar, ah, se faz. E sonhar assim é melhor porque a realização desse sonho é palpável.
Afinal, todos temos, diariamente, uma usina de enriquecimento de urânio para destruir depois de voar por um cânion, desviando de mísseis antiaéreos, e depois suportar a força de dez gravidades, na esperança de que o inimigo não tenha tempo de reagir. Isso sem falar nas memórias e nos traumas que nos acompanham para além do pouso espetacular no porta-aviões. Todos ansiamos, diariamente, pelo voo contemplativo ao lado da mulher amada, rumo ao pôr-do-sol.
Tudo isso para, no dia seguinte, acordar com outra missão extremamente arriscada, que exigirá de todos nós companheirismo, perdão (!), coragem, fé, honra. E um tiquinho da rebeldia virtuosa que dá sabor até mesmo à mais modorrenta das vidas.